domingo, 14 de junho de 2009

Retirado de Habermas

Max Weber introduziu o conceito de “racionalidade” a fim de determinar a forma da atividade econômica capitalista, das relações de direito privado burguesa e da dominação burocrática. Racionalização quer dizer, antes de mais nada, ampliação dos setores sociais submetidos a padrões de decisão racional. A isso corresponde a industrialização do trabalho social, com a conseqüência de que os padrões de ação instrumental penetram também em outros domínios da vida (urbanização dos modos de viver, tecnicização dos transportes e da comunicação). Trata-se, em ambos os casos, da propagação do tipo de agir-racional-com-respeito-a-fins: aqui ele se relaciona à organização dos meios, lá à escolha entre alternativas. A planificação pode finalmente ser concebida como um agir racional-com-respeito-a-fins, de segundo grau: ela se dirige para a instalação, para o aperfeiçoamento ou para a ampliação do próprio sistema do agir racional-com-respeito-a-fins. A “racionalização” progressiva da sociedade está ligada à institucionalização do progresso científico e técnico. Na medida em que a técnica e a ciência penetram os setores institucionais da sociedade, transformando por esse meio as próprias instituições, as antigas legitimações se desmontam. Secularização e “desenfeitiçamento” das imagens do mundo que orientam o agir, e de toda a tradição cultural, são a contrapartida de uma “racionalidade” crescente do agir social.

Herbert Marcuse partiu dessa análise para mostrar que o conceito formal de racionalidade –que M. Weber tirou do agir racional-com-respeito-a-fins do empresário capitalista e do trabalhador industrial assalariado (...) [etc.] –tem implicações materiais determinadas. Marcuse está convencido de que, no processo que Weber chamou de “racionalização”, dissemina-se não a racionalidade como tal, mas, em seu nome, uma determinada forma inconfessada de dominação política. Visto que se estendo à escolha correta entre estratégias, ao emprego adequado de tecnologias e à organização de sistemas de acordo com fins (...) essa espécie de racionalidade subtrai à reflexão a contextura de interesses globais da sociedade –ao serem escolhidas as estratégias, empregadas as tecnologias e organizados os sistemas –, furtando-a a uma reconstrução racional (...) O agir racional-com-respeito-a-fins é, segundo sua estrutura, o exercício do controle. “Talvez o próprio conceito de razão técnica seja uma ideologia. Não apenas na sua aplicação, mas já a própria técnica é dominação (sobre a natureza ou sobre o homem), dominação metódica, científica, calculada. Não apenas de maneira acessória, a partir do exterior, que são impostos à técnica fins e interesses determinados –eles já intevêm na própria construção do aparato técnico; e técnica é sempre um projeto histórico-social; nela é projetado aquilo que a sociedade e os interesses que a dominam tencionam fazer com o homem e com as coisas. Tal objetivo da dominação é “material” e, nessa medida, pertence à própria forma da razão técnica.

PALAVRAS-CHAVE PARA ENTENDER O PENSAMENTO DE ALGUNS AUTORES QUE FALAM SOBRE TECNOLOGIA E IDEOLOGIA:

H. Marcuse: Técnica e Dominação
M. Weber: Racionalização e racinalidade
T. Adorno e M. Horkheimer: Indústria Cultural e Dialética do Esclarecimento
W. Benjaminn: Obra e Contexto Histórico
J. Habermas: Consciência Tecnocrática e Agente Comunicativo
I. Kant: razão e esclarecimento
K. Marx: mercadoria, fetichismo, alienação e capital.
Hegel: dialética e idealismo.


Prof. Felipe Araújo

Filme O Homem da Capa Preta e conteúdos históricos


O filme começa em Alagoas, com o nascimento de Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque em 1909. Uma poesia de cordel fica ao fundo, enquanto a mãe de Natalício fecha o corpo de seu filho com dizeres que remetem à cultura e à tradição do sertão nordestino.
Natalício, já crescido, presencia a morte de seu pai, Antônio Tenório. O mesmo assassino de seu pai volta anos depois para matá-lo, mas Natalício se aproveita enquanto a arma do jagunço falha e mata o algoz de seu pai à inchadadas.
O enredo salta para a metade da década de 1940, quando Getúlio abre eleições diretas, e mostra Tenório Cavalcanti como um deputado estadual eleito em Duque de caxias, no Rio de Janeiro. Em seu discurso de posse enfatiza: “o povo agora tem um advogado e um defensor”, empunhando a constituição na mão esquerda e sua metralhadora Lurdinha na mão direita, usando uma capa preta que demonstra ao povo que eles agora têm um denfensor.
Tenório se mostra como um típico político populista, que com uma mão acaricia o povo e com a outra manipula. Escutando os problemas do povo, pouco resolve, geralmente transferindo para outros, inclusive para Deus. Andando entre o povo de Duque de Caxias e perguntado por pessoas que bebiam na rua para que time torcia Tenório, este respondeu: “sou Flamengo de coração, Fluminense por convicção, mas eu torço mesmo é para o Bota-Fogo”.
Alcançando uma popularidade cada vez maior, Tenório Cavalcanti também passa a acumular cada vez mais inimigos, principalmente entre os políticos do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), representado no filme pelo deputado Afonso Arinos, inimigo pessoal de Natalício, que chega à câmara Federal pela UDN (União Democrática Nacional).
E o PTB consegue eleger o prefeito, o governador e o presidente, podendo assim agir contra Tenório em Duque de Caxias. É o que acontece. O delegado Lima Maragato vai para a cidade e passa a perseguir sem clemência os aliados de Tenório. Em um evento em que o delegado manda que Tenório tire o chapéu na sua presença e o deputado não acata, Maragato derruba o chapéu de Natalício, que se abaixa para peg-alo e é fotografado de joelhos diante do delegado, abalando sua carreira política.
A partir de então Tenório não usa mais a capa preta e a cidade entra em estado de guerra civil, com morte de vários lados, inclusive a do delegado Maragato.
Sem uma preocupação em mostrar os anos se passando, o filme passeis pelos governos de Getúlio Vargas, de 1951 a 1954; de Juscelino e de Jânio Quadros quase que imperceptivelmente, não fosse pelas expresões dos atores que eram envelhecidos. A instabilidade política do país é contada pelo discurso de Tenório, que sai da UDN para tentar o governo da Guanabara contra Carlos Lacerda e perde. Após a derrota fica sozinho e sem o apoio de seus antigos e fiéis aliados, um camponês e um jornalista, que discordavam da atuação inflexível de Natalício.
Derrotado nas urnas e sem apoio, o homem da capa preta revê suas atuações políticas e resolve mudar, refazendo as alianças perdidas porém com um novo discurso, que agora se aproximava de João Goulart, portanto visto como de esquerda para a época. O jornal Luta Democrática é a voz destas novas idéias, consumido pelas classes mais populares do Estado.
Mas o golpe militar representa também um duro golpe para o renascimento político de Tenório. Seus aliados foram perseguidos e em breve chegaria a vez dele. O jornalista fugiu pela embaixada da Suíça enquanto o operário resolveu ficar e resistir, provavelmente em guerrilhas.
Tenório também ficou. Estava novamente com a Lurdinha em uma mão e a capa preta sobre o corpo ajudando ao povo contra as injustiças dos poderosos. “não sou facista nem comunista. Sou Tenório Cavalcanti. Sou macho”. O político populista estava acima das ideologias.
Na visão do diretor Sérgio Rezende, Tenório é o herói. Um populista saído do povo e que busca governar para o povo. A constituição em uma mão e a metralhadora em outra estão de acordo com a própria representação da deusa grega da justiça que, de olhos vendados, traz em uma mão uma balança e na outra uma espada.
Natalício não entra em crises pessoais, que ficam representadas no papel de sua esposa, que tem breves surtos de loucuras.
Para Sérgio Rezende, o populismo é odiado pelos poderosos e aliado do povo. Tenório acaba do lado de Jango e seus inimigos são conchavados com o exército que tomou o poder. Desta maneira, o golpe militar é também um golpe no governo popular, democrático. Quando a cada de Natalício é cercada pelo exército, entenda-se como a casa de um representante do povo sendo invadida sem mandato, sem leis.
Na última sequência do filme, os militares entram novamente na casa de Tenório em busca de pessoas perseguidas pelo regime que supostamente estariam escondidas ali, no lar do político. Os soldados são liderados pelo arquirival Afonso Arinos, que se dirige a Natalício de diz que vai destruir seu nome e sobre ele jogar sal e pedras, ou seja, a punição dada a Tiradentes, um herói da liberdade. Essa é a visão que tenta passar Sérgio Rezende nesta sua leitura sobre o populismo, aproximando-a dos dias atuais, já que o filme é de 1986 e dialoga menos com o início do regime que com o seu final.
Todo o filme trabalha cores. No início do filme em que Tenório está sempre de preto, seus inimigos estão sempre de branco. Após deixar de usar a capa preta, Tenório é que passa a usar o branco e seus inimigos usam o preto. As câmeras geralmente utilizam-se de planos médios e closes quando Tenório fala, aproximando em planos-detalhes de sua boca ou expressões do rosto quando este discursa raivosamente. Quando seus opositores estão reunidos, raramente suas caras são mostradas, com planos nas mãos, nas roupas ou mesmo colocando objetos na frente do rosto, destacando a figura de Afonso Arinos.
O filme ganhou os prêmio de melhor filme, melhor atriz (Marieta Severo), melhor ator (José Wilker) e melhor música(D. Tygell) no festival de gramado de 1986.

Temas e conteúdos históricos abordados:

O principal conteúdo histórico que percorre todo o filme são os 19 anos que durou o populismo. Segundo a leitura que o diretor Sérgio Rezende fez, os populistas são apresentados pela figura de Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque e estão ao lado do povo. No caso de Tenório, emergiram do próprio povo. Tanto que nos momentos em que o deputado Tenório se afasta do povo, sofre grandes derrotas e fica isolado politicamente. Populistas históricos tradicionais como Getúlio Vargas e mais superficialmente Jânio Quadros, são vistos sutilmente como inimigos.
O período temporal do filme percorre os 19 anos de populismo começados historiograficamente em 1945, com o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e a eleição de Eurico Gaspar Dutra, até a Revolução Gloriosa de 1964, conhecida menos gloriosamente como golpe militar, cujo primeiro presidente foi Humberto de Alencar Castelo Branco.
Passam-se por estes diferentes anos, diferentes presidentes. Dutra (1945-1951), Getúlio Vargas novamente (1951-1954), o presidente João Fernandes Café Filho (1954-1955) que sucedeu Vargas após o suicídio, Juscelino Kubitschek (1956-1961), Jânio Quadros (de favereiro a setembro de 1961), João Goulart (1961-1964) e Castelo Branco (!964-1967). O filme consegue passar a instabilidade do populismo que em menos de 20 anos teve seis presidentes dos quais apenas dois cumpriram todo o mandato, que foram Dutra e JK.
Os idealizadores do filme não deixaram de considerar o fato de estarem produzindo a película em 1986, logo após o fim do regime. Assim, dialogam diretamente com os anseios de um público que quer vilanizar os militares e exaltar os últimos democratas antes do golpe. Em função disto Tenório era um democrata populista que se aliou a João Goulart. Ambos foram perseguidos assim que os militares tomaram o poder. Eles foram os últimos democratas e estavam ao lado das massas. Os inimigos de Tenório, por outro lado, acabaram todos ao lado da ditadura, perseguindo o povo.
Tenório é como o povo: fala o que pensa. Seus inimigos atuam sempre escondidos, confabulando em reuniões em que suas caras não aparecem. Assim é Afonso Arinos, com atitudes indiretas de nomear cargos para perseguir seus opositores. Essa é a linha que Rezende se utiliza para contar os fatos do populismo como pré-cessor do regime militar em diálogo com o momento de pós-ditadura.

COR & DOR: O TRÁFICO NEGREIRO NO ATLÂNTICO


INTRODUÇÃO



Meses havia, portanto, em que 1500 indivíduos deixavam para sempre sua aldeis, sua terra, empurrados para dentro dos tumbeiros. Outros tantos indivíduos aguardavam encurralados nas cercanias das cidades, sendo escolhidos, alimentados e, muitas vezes, sepultados ali mesmo. Cançaso físico, mau tratamento no percurso terrestre, subnutrição e as doenças do porto luandense ceifavam boa parte dos escravos forasteiros, arrancados do platô ovibundo e de mais longe.
[Alencastro]

O objetivo deste trabalho é analisar alguns pontos do tráfico negreiro realizado através do oceano Atlântico entre a África e a América. Basicamente será debatido a situação do negro depois de aprisionado e pronto para partir rumo a América ibérica, entendendo que o processo para as colônias francesas, holandesas ou inglesas é semelhante e em grande parte saído dos mesmos portos africanos e traficado pelos mesmos grupos.
Aqui será dado uma ênfase no caso português, ou seja, os escravos que são aprisionados por ou para lusitanos e que se direcionam para os portos brasileiros, dando uma ênfase um pouco maior para o porto de Luanda, em Angola, de onde partiram a maioria dos escravos que chegaram ao Brasil, em especial ao Rio de janeiro, e que ganhou enorme importância a partir do século XVII.
Entretanto não relatarei como ocorreram as apreensões dos escravos na África e nem entrarei em detalhes maiores sobre as políticas internas africanas, a entender, a guerra entre os próprios africanos para conseguirem escravos e venderem aos europeus.
As guerras entre os países da Europa pelos portos de aprisionamento e exportação de negros escravos, como entre Portugal e Holanda, serão deixadas de lado exatamente por priorizar apenas os dois momentos extremos na vida do negro: quando é aprisionado e sai da África e quando chega na América, em especial no Brasil.
O trato dos viventes, de Luiz Felipe de Alencastro é a obra motora deste trabalho, o que quer dizer que sigo a estrutura deste autor para debater com os demais aqui apresentados ao longo destas poucas páginas em que pouco poderá ser aprofundado, mas uma bibliografia mínima será levantada.
Manolo Florentino também será citado como uma das fontes mais importantes. Em primeiro lugar por acompanhar a visão de Alencastro em alguns aspectos, como a importância de Angola para o tráfico, em segundo lugar por trazer novas questões no que diz respeito a tráfico. Entretanto como é muito preso ao Rio de Janeiro, foram utilizados poucos trechos de sua obra Em Costas Negras.

CICLO FECHADO

Para levar a cabo viagens regulares entre a Metrópole e a conquista americana, devia-se observar um calendário marítimo preciso, uma “janela” sazonal delimitada. Largava-se de Lisboa entre os dias 15 e 25 de outubro para lançar âncora em Recife cerca de dois meses mais tarde. Na volta carecia levantar velas em Pernambuco, ou na Bahia, até o fim de abril para chegar em Lisboa no mês de julho. Tais costumavam ser os parâmetros ideais para essa viagem. Fora desses prazos, o tempo de cada uma das etapas da viagem dobrava –no mínimo –,com o aumento exponencial do risco da tripulação, expostas às tempestade sazonais, à sede e às doenças nas calmarias ao largo da zona equatorial africana.
[Alencastro]

Após livrar-se dos mouros e depois de uma memorável guerra contra a Espanha, Portugal ganha sua autonomia e parte para uma monarquia absolutista em que muitos dos próprios fidalgos portugueses se tornaram os comerciantes. Já no século XV a burguesia comercial manifestou uma grande força, enquanto a nobreza demonstrou ter menos aversão ao trato com negros que na maioria dos outros países europeus. Por outro lado, o capital comercial não chegou a revolucionar o modo de produçào que continuou sendo basicamente senhorial, portanto atrasado e incapaz de saltar até uma ordem social capitalista (1) .
Os nobres receberam grandes extensões de terra, para as quais tiveram que recrutar trabalho escravo africano. Os primeiros escravos chegaram em 1441. Três anos mais tarde várias centenas foram trazidos para o serviço doméstico, e pouco tempo depois milhares trabalhavam em grandes quantidades nas fazendas da nobreza.
Explorando o caráter cosmopolita, aterritorial, do capital comercial acumulado nas praças européias, Portugal lança precocemente as bases imperial de mercado. Mas a Coroa não dispõe de meios nem da necessária força para conservar esse espaço transcontinental (2) e os negros serão uma das armas e das opções que os portugueses encontrarão para solucionar o problema de falta de material humana para habitar os territórios descobertos e por descobrir.
Entretanto como vamos nos referia ao tráfico do Atlântico, vale apenas ressaltar que as potências melhor equipadas para o comércio ultramarino fizeram com que os lusitanos perdessem mercados e territórios principalmente no oriente, tirando algumas lições e voltando-se para o Atlântico, implantando ali um sistema de produção econômico mais eficaz que na Ásia.
O comércio de escravos se apresenta como uma fonte de receita para o Tesouro, no qual os ganhos fiscais sobrepõem os ganhos econômicos, e Portugal, que chega na África em busca de jazidas de metais preciosos, se integra em um sistema de rede em que tenta saldar suas trocas de arremessas de ouro, prata, cobre, dos quais as terras portuguesas eram muito pouco providas (3) .
Após os primeiros contatos Portugal logo desenvolve o trato de negros já no século XV, que se apresenta como uma fonte de receita para a Coroa, como vimos, e ainda responde à demanda escravista de outras regiões européias. Os africanos surgem, então, como vetor produtivo da agricultura das ilhas atlânticas e consolidam a produção ultramarina portuguesa.
Mas é o monopólio do tráfico negreiro que garantirá, ao menos em um primeiro momento, determinadas vantagens para a Corte de Portugal. Primeiro porque o controle do trato negreiro lhe dá o comando da reprodução do sistema escravista. Segundo, como já dissemos, a administração régia encontra novas fontes de receita. Em terceiro lugar, e de muita importância, o confronto entre administração régia, moradores e jesuítas é provisoriamente contornado; a evangelização é facilitada e os índios são menos apreendidos.
Em quarto lugar, “os negociantes combinarão as vantagens próprias de uma posição de oligopsônio (na compra do açúcar) com as vantagens inerentes a uma situação de oligopólio (na venda de escravos) (4) ”. Podemos analisar também que o comércio externo da colônia é dinamizado macro e microeconomicamente. E, por fim, a longo prazo, os recursos ao crédito e a compra antecipada de africanos favorece aos moradores da colônia.
Trabalhando melhor alguns deste seis pontos temos que, em primeiro lugar, as colônias portuguesas não concorriam e sim se complementavam, como cita Manolo Florentino resumindo as idéias de Alencastro:

Os traficantes europeus demandavam escravos –e, algumas vezes, alimentos –, podendo em troca oferecer instrumentos de guerra e outras mercadorias. Por sua vez, os grupos dominantes africanos viam no tráfico um instrumento por meio do qual podiam fortalecer seu poder, incorporando povos tributários e escravos. A venda destes últimos no litoral lhes permitia o acesso a diversos tipos de mercadorias e material bélico. Desse modo, aumentava a sua capacidade de produzir escravos e, por conseguinte, de controlar os bens envolvidos no escambo. Estava criado um circuito fechado em si mesmo, cuja velocidade de rotação dependia das oscilações da demanda americana (5) .

Quanto ao lucro que a administração régia ganha na receita, basta citar o exemplo de que o cativo que entrava no Brasil recebia 20% de tributo sobre seu preço, enquanto que na América espanhola o tributo era de 66%. Na dita dinamização da economia no sentido macro e micro, estamos falando de uma relação semelhante à do circuito fechado: o comércio atlântico amplia a demanda das zonas agrícolas (macro) e os lucros dos engenhos fazem com que os senhores comprem mais escravos para produzirem cada vez mais.

POR QUE O NEGRO?

Tornado subumano pela escravatura, o nativo imaginava que única forma de salvaguardar sua liberdade sonsistia em abdicar do pertencimento à humanidade.
[Alencastro]



Dentro deste ciclo ocorre uma relação de dependência na qual fica difícil saber qual o lado mais importante neste jogo comercial: se a metrópole monopolizadora e administradora; se a África fornecedora de escravos; ou se o Brasil (e, por conseguinte, a América) de onde vem a demanda. Sabe-se que a nobreza brasileira progressivamente se tornava e se fazia mais dependente dos negros africanos. As razões são muitas. Vejamos algumas.
Em princípio a oferta de escravos africanos se torna mais regular e flexível que a de índios. “Os efeitos seletivos”, também, “das circunstâncias envolvendo a captura, as grandes marchas até o litoral e as vendas sucessivas de que o escravo é objeto antes de ser embarcado” (6) . Muitos africanos eram (parcialmente) imunizados às doenças predominantes dos europeus e, em contrapartida, as enfermidades trazidas pelos negros aumentou a mortalidade dos índios livres e cativos, elevando a demanda de africanos.
Para Florentino havia mais uma explicação: a de que os escravos eram mercadorias socialmente baratas. Segundo ele, “quase todos os homens livres inventariados eram proprietários de pelo menos um escravo (7) ” mesmo nas épocas de preços altíssimos dos africanos. “Ora, se este padrão conseguiu manter-se mesmo levando em consideração os custos do apresamento, transporte e a remuneração dos traficantes, então é óbvio que residia na África o segredo da extensão social da propriedade escrava no Rio de Janeiro (8) .”
Entre 1790 e 1835 o Rio de Janeiro concentrava cada vez mais escravos, mesmo os preços internacionais do açúcar em franca queda, caindo 14% entre 1799 e 1807, e 11% de 1813 até 1819. Ainda assim as exportações do açúcar cresceram, devido ao número maior de engenhos no Brasil. Com isto, podemos concluir “que a oferta de homens deveria atender não a uma demanda episódica, mas sim a uma procura que se prolongou e aumentou no tempo. A oferta africana tinha, pois, de ser uma oferta elástica e barata de homens (9) ”.
Genovese discute em seu livro Esclavitud y Capitalismo, as idéias de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior sobre a ostentação e a luxúria dos luso-brasileiros, ou melhor dizendo, sobre o comportamento dos portugueses da América diante do escravo e do trabalho manual.

Para Gilberto Freyre, los portugueses que se asentaron en Brasil llevaron consigo ‘el gusto por la ostentación y la grandeza y el desprecio por el trabajo manual, que se explican, en grande parte, porque en su propria patria y durante casi un siglo, la mayor parte de la fuerza de trabajo la constituyeron negros esclavos, y porque anteriormente, durante muchos siglos, los cultivos más difíciles habían corrido a cargo de los moros (10) .

Genovese continua afirmando que em Caio Prado Júnior o patriarcalismo não vem de Portugal, mas é fruto do próprio contexto histórico local, caracterizado pelo sistema de plantation com força de trabalho escrava.
Ainda com respeito ao comportamento do “brasileiro” e de sua relação com o escravo, Alencastro aponta o escravo como um objeto de luxo e que mesmo isto contribui para o aumento da demanda de africanos, já que nesse comportamento ostentatório, é medido a riqueza pelo número de empregados domésticos negros (11) .

Notas:

1- GENOVESE, E. esclavitud y capitalismo, Barcelona: Ariel, 1971, p. 118.
2- ALENCASTRO, L. F. o trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 30.
3- Id. ibid. p.30
4- id. ibid. p.37
5- FLORENTINO, M. em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, São Paulo:Companhia das Letras, 2002, p. 87. Mais detalhes em ALENCASTRO,op.cit.p. 35
6- ALENCASTRO, L. F. o trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 39.
7- FLORENTINO, M. op. cit. p. 75.
8- Id. ibid. p.76
9- id. ibid. p.78
10- GENOVESE, E. esclavitud y capitalismo, Barcelona: Ariel, 1971, p. 125.
11- ALENCASTRO, L. F. o trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 38.

Santo Agostinho e o seu contexto


O cristianismo surgiu durante o império de Otávio Augusto levando em conta três principais fatores históricos: a religião israelita; o pensamento grego; e o direito romano –menos óbvio, porém serviu de sistematizador do novo organismo social: a igreja. Dentre os dogmas que levou os seguidores de nazareno a confrontar-se com o judaísmo, um fundamental foi a figura de Cristo como tábua de salvação para o mal.
Entre os principais apologetas cristãos estaria o que mais influenciou Agostinho, isto é, Paulo de Tarso, que viajou pelo oriente e ocidente predicando a palavra de Jesus, morrendo em Roma. São Paulo formulou a teoria que o problema do mal, do sofrimento e do pecado tinha solução em Cristo, ficando conhecido como o “teólogo da redenção”, dividindo importância doutrinária com São João, o “teólogo da encarnação”, pois vira no Nazareno o verbo de Deus encarnado.
Dois dogmas muito importantes criados por esse período primitivo foram muito tratados na obra de Agostinho, foram estes o pecado original e a redenção pela cruz, pela qual o próprio bispo de Hipona se redimiu. Para o patrístico, o homem poderia utilizar-se desta vida para, em Cristo, encontrar Deus além da morte.
E foi no século II, ainda no ar as memórias de Jesus Cristo, que surgiu a Patrística, um período do cristianismo que perduraria até o século VIII, quando foi superada pela Escolástica, deixando, entretanto, a obra do maior de todos os pensadores cristãos: Aurélio Agostinho.

No período pré-agostiniano prevaleceu uma defesa do cristianismo feita através dos padres apostólicos, apologistas e controversistas, frente aos combates pagãos.
No século III, no oriente, o cristianismo crescia em contato direto com a cultura clássica helênica, esboçando as primeiras utilizações da filosofia pagã com Clemente Alexandrino e Orígenes. Este último criou a primeira grande síntese da doutrina cristã em um pensamento filosófico. No ocidente os africanos predominavam na intelectualidade da nova religião através de Santo Ambrósio e São Jerônimo. Através deles o norte da África seria o berço da intelectualidade latina por muito tempo (São Cipriano, Novaciano, Arnóbio, Lactâncio).
A patrística levava uma vida monástica e ascética, florescendo graças à proteção de Constantino e o Edito de Milão (313) que declarava a igreja católica livre, sendo instituída como religião do estado romano com Teodósio em 380. Antes, em 325, o concílio de Nicéia reunira mais de 300 bispos, mostrando a força da religião.
Mas o crescimento trouxe tenazes combatentes e o cristianismo sente a necessidade de sistematizar o seu discurso, começando assim uma construção intelectual utilizando a lógica aristotélica. Era mister uma defesa racional e filosófica para combater as heresias. Atanásio (295-373) formulou, neste contexto, a doutrina da trindade.

Também neste contexto nasceu no ano de 354 –em Tagaste, Numídia, na África (atual Argélia)- Aurélio Agostinho. Longe de sua infância francos, saxões e alamanos invadem a Gália enquanto os Hunos urgem na Rússia. Na adolescência seguiu a cultura clássica, inspirada por um livro de Cícero, tendo entregado-se posteriormente a doutrina do maniqueísmo, como veremos em breve. Com 32 anos converte-se ao cristianismo após ler as cartas de Paulo de Tarso, passando a escrever as suas primeiras obras.
Em 387 é batizado com Alípio e seu filho Adeodato. Após a morte de sua mãe Mônica, em 388, vai para Roma em seguida passando a viver monasticamente em Tagaste. Em 389 morre Adeodato.
Agostinho torna-se presbítero em 391 e bispo de Hipona quatro anos depois. A obra “As Confissões”, fonte principal de estudo sobre o bispo africano neste trabalho, foi escrita entre 397 e 398.
No início do século V, já avançado em idade, Agostinho vê o império romano cair aos poucos nas mãos dos bárbaros. Os saxões invadem a Bretanha, os vândalos e suêvos invadem a Espanha e em 410 Alarico conquista Roma. Três anos depois Agostinho começa a escrever sua principal obra: “A Cidade de Deus”, defendendo que a Jerusalém terrestre caíra (Roma) por ser pagã, tendo os homens que buscar a salvação na Jerusalém celeste, ao lado de Deus. Anos depois, em 429, os vândalos conquistam a África e um ano depois o bispo de Hipona morre.



Um pouco mais

Com Agostinho a patrística chega ao seu apogeu e depois ao seu declínio. Uma das principais razões internas é que já não era mais possível o desenvolvimento de teorias místicas e filosóficas sem cair na absoluta razão. Externamente, a queda do império romano, a cisão do oriente com o ocidente e com este nas mãos dos bárbaros enquanto aquele sofria com os árabes; tudo contribuiu para que a igreja passasse a ser a guardiã única do mundo. Era necessário mudar de objeto de especulação, passar do sobrenatural para a natureza e sair da filosofia clássica para constituir um pensamento verdadeiro e peóprio dos cristãos, pois com a patrística a teologia já estava consolidada.
Mas o legado foi deixado no século IV, quando um homem nasceu entre a queda de Roma e a ascensão do cristianismo, sabendo transformar em benção de Deus o que era para os homens maldição. Agostinho era a Roma que virava cristã, pois ele próprio começara pagão. Agostinho era o romano que abandonava a cultura helênica, para abraçar o Verbo encarnado, quando deixara para trás a retórica em busca da bíblia, ainda que não a compreendesse. O caminho que o homem de bem deveria seguir era, como ele, largar a vida vulgar e pecadora para encontrar em Jesus a salvação. Agostinho também representava o homem que deveria abandonar as heresias para encontrar a virtude nas escrituras sagradas, pois ele próprio fora um herege (maniqueísta) e conseguira encontrar o caminho a tempo.
Em contrapartida, Agostinho foi um neo-platônico e deu a todo o ocidente uma visão dualista de bem e mal que nos acompanha até os dias de hoje. Assim podemos dizer que ele não conseguiu livrar-se totalmente de seu lado romano, pagão e até mesmo do que ele considerava heresia. Entretanto isto apenas demonstrava que ele era fruto de seu tempo, mas que sempre que suas defesas apresentavam dúvidas ou caminhos alternativos de argumentação, o Santo não hesitava em ficar com a Bíblia e a palavra de Cristo. Representava a própria passagem do paganismo para o cristianismo, que internamente nele foi vencedor, tal qual graças a ele, externamente prevaleceu.

Agostinho e Hortênsio


Com 16 anos Agostinho foi para Cartago e lá buscou uma vida com maiores amores e emoções, pois “odiava” a sua “vida estável e o caminho isento de riscos”, por que sentia dentro de si “uma fome de alimento interior”, que posteriormente mostraria ser fome de Deus (L III, 1). Entregou-se, então, aos espetáculos teatrais, ao qual mais tarde chamou de “rematada loucura”. Isto nada mais era que um apego à cultura clássica, sendo mais evidente quando Agostinho entra em contato com Cícero.
Ainda jovem Agostinho começou a fazer parte de um grupo de companheiros que se intitulavam “os demolidores, nome sinistro e diabólico”, diz em suas confissões, “por eles considerado um distintivo de elegância”. Ainda que seguisse o grupo, as atitudes destes horrorizavam ao santo por suas atitudes, “isto é, as troças com que insolenimente assaltavam a simplicidade dos calouros, a quem amedrontavam, rindo-se sem razão e achando nisso pasto para as suas malvadas alegrias. Nada mais semelhante aos seus atos que as ações do próprio demônio. E assim, que nome mais acomodado para eles do que o de ‘demolidores?’” (L III, 3).
Com este grupo, e já nascido seu filho Adeodato, o bispo de Hipona chegou por seus 19 anos ao livro Hortênsio de Cícero, “cuja linguagem, mais do que o coração, todos louvavam. Esse livro contém uma exortação ao estudo da filosofia e”, segundo o próprio Agostinho, “mudou o alvo de minhas afeições e caminhou para Vós, Senhor, as minhas preces, transformando as minhas aspirações e desejos (L III, 4).
Já neste período de sua vida Agostinho sentia falta do nome de Jesus Cristo quando este não estava presente em suas atividades –no que lia ou fazia. Como em Cícero faltavam referências de Jesus, dedicou-se, então, a tentar ler a Bíblia na esperança que esta lhe esclarecesse algo. Todavia não avança perante a “simplicidade da Bíblia”, um livro sem elegância se comparado com a refinada linguagem ciceroneana. O Santo fez o seguinte juízo do Livro Sagrado: “A sua simplicidade repugnava o meu orgulho e a luz de minha inteligência não lhe penetrava no íntimo”. Resume que a linguagem bíblica é infantil e que se achava na “conta de grande” demais para lê-la (L III, 5).
Destarte a maneira que Agostinho coloca a linguagem da filosofia sobre a bíblica, não são elogios os que ele teceu sobre aquela em suas confissões. Tratou a filosofia tão somente como um meio de sedução que alguns utilizavam “colorindo e adornando os seus erros com um nome glorioso, suave e honesto”. Mas como era Santo Agostinho a representação da transição entre dois período (pagão e cristão), não deixou de saborear Hortênsio como um pagão, pois confessaria: “apenas me deleitava naquela exortação, o fato de essas palavras me exitarem fortemente e ascenderem em mim o desejo de amar, buscar, conquistar, reter e abraçar, não esta ou aquela seita, mais sim a mesma sabedoria, qualquer que ela fosse” (L III, 4). Por incrível que pareça, não se trata de um elogio e sim a maneira de Santo Agostinho combater o paganismo como uma vida sem sentido que ele mesmo levou e da qual se redimiria.

O NEOPLATONISMO E A ETERNA FÉ CRISTÃ


Podemos notar, ao analisar num plano geral a obra confissões, que Agostinho faz uma busca incessante em direção a uma verdade que seja eterna, que não se modifique através dos tempos. Agostinho buscava formular as bases de uma humanidade regida por uma lei divina imutável e absoluta. Em diversos trechos de sua obra Agostinho mostra sua inquietação em relação às leis terrenas, que de tempos em tempos se modificam. “Tais são os que se irritam por terem ouvido dizer que noutros tempos se permitia aos justos o que agora lhes é vedado e que Deus, por razoes momentâneas, preceituou aos primeiros uma coisa e aos vindouros outra, estando uns e outros sujeitos à mesma injustiça... O que há pouco era permitido já não o é agora. Certas coisas, que antes eram lícitas e até prescritas, agora são justamente proibidas e castigadas. Porventura a justiça é desigual e mutável? Não. Os tempos a que ela preside é que não correm à par, pois são apenas tempos.”
Nessa sua inquietação, Agostinho mostra-se um homem típico de seu tempo, e podemos analisar sua obra dentro do contexto de esfacelamento do Império Romano. Agostinho vive a decadência do Império, sua desestruturação política e o período de invasões bárbaras. Já não se podia mais depositar confiança no outrora grandioso direito romano. Já estavam em cheque todos os alicerces da civilização clássica. Precisava-se de uma nova verdade, que não fosse etérea. Para Agostinho essa verdade era a fé cristã.
Mas como se desvencilhar de séculos de uma cultura greco-romana? Era possível fazer uma ruptura entre o agonizante mundo clássico e a vindoura civilização cristã? De maneira alguma, e a própria vida e obra de Santo Agostinho nos mostra os laços entre esses dois mundos. Agostinho teve uma educação predominantemente clássica. Leu Cícero, adentrou-se na seita dos maniqueístas e antes de converter-se teve amplo contato com a filosofia neoplatônica.
Para analisarmos as influências neoplatônicas na obra de Agostinho, devemos levar em consideração que os relatos agostinianos de que dispomos são todos posteriores a sua conversão. Esse aspecto é importante, pois a leitura deve ser realizada da seguinte maneira: Agostinho já havia encontrado a sua verdade, ele comenta a sua fase pré-cristã já tendo em vista “o colírio de suas dores salutares”.
Porém, apesar de já ter abraçado a salvação cristã, agostinho de maneira alguma joga fora os conhecimentos adquiridos nas fontes platônicas. É muito interessante um cânone onde Agostinho compara as teorias neoplatônicas com a doutrina cristã. Em seguidos parágrafos ele faz a mesma construção - inicia enunciando um preceito neoplatônico aceito pelo cristianismo, em seguida completa com um preceito bíblico e finaliza dizendo: isto não li naqueles livros (neoplatônicos). “Do mesmo modo, li nesse lugar (neoplatonismo) que o Verbo Deus não nasceu da carne, nem do sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus. Porém, que o verbo se fez homem e habitou entre nós, isso não o li eu aí.” Agostinho complementa a doutrina neoplatônica com os dogmas cristãos.
Agostinho é um filósofo que articula uma transição que ocorre em seu tempo: a transição do mundo clássico para a civilização cristã. Mas também podemos substituir o termo transição pelo termo fusão, pois o que ocorre indubitavelmente é a fusão de uma cultura já caduca com uma cultura em formação. Em suma Agostinho visualiza a nova pax que deveria reinar sobre a terra em substituição do mundo caótico em que vivia em fins do século IV. Ele compara a filosofia platônica com a cristã de maneira bem elucidativa no final do livro VII de confissões. Com o neoplatonismo você visualiza a paz, mas não sabe como alcança-la, com o cristianismo você a enxerga e desbrava os caminhos para lá chegar. “Uma coisa é ver dum píncaro arborizado a pátria da paz e não encontrar o caminho para ela, gastando esforços vãos por vias inacessíveis, entre os ataques e insídias dos desertores fugitivos com seu chefe Leão e Dragão; e outra coisa é alcançar o caminho que para lá conduz, defendido pelos cuidados do general celeste, onde os que desertaram da milícia do paraíso não podem roubar, pois o evitam como suplício.”

Santo Agostinho e a experiência maniqueísta


A experiência maniqueísta


De 371 a 374 d. C. Agostinho viveu em Cartago, supostamente com o objetivo de poder estudar. As “Confissões” não revelam nada sobre o seu desenvolvimento intelectual nos primeiros dois anos da estadia em Cartago, e o faz somente a partir de 373 d. C., quando contava Agostinho dezenove anos. Conheceu Cícero nos seus estudos de retórica e, encantado, passou a se dedicar à leitura dos clássicos disponíveis em latim. É neste momento que Agostinho envolveu-se mais com a cultura clássica, pois viu nela a possibilidade de encontrar as respostas para suas inquietações. A experiência com Cícero e seu “Hortensius”foi, entretanto, bastante curta. Agostinho tinha uma formação cristã graças a educação que Mônica, sua mãe, lhe deu. Seus questionamentos, portanto, nunca deixaram de se relacionar com a fé cristã. A admiração de Agostinho por Cristo sempre foi grande e motivadora. Cristo era um segredo a ser desvendado, e o estudo da obra ciceroniana não lhe permitia avançar em sua busca.(1) Isto não quer dizer que os clássicos foram abandonados por Agostinho. Muito diferente disto, foi o contato com as obras de retórica e filosofia que revelariam ao jovem Agostinho a possibilidade de procurar explicações para Deus e o universo fora do cristianismo e que provocaria nele o interesse pelo racionalismo pagão, que comporia juntamente com a “superstição” cristã e o misticismo maniqueísta, as três filosofias morais experimentadas por Agostinho.
O maniqueísmo surgia como uma alternativa possível ao seus problemas, pois tratava-se de um heresia cristã. Ao que parece os contatos com os maniqueus haviam se dado desde sua ida para Cartago (talvez por intermédio de seu amigo Romaniano), mas Agostinho não tinha ainda se envolvido diretamente com a cosmologia racional e o “conhecimento superior” dos discípulos de Manés. Além do interesse pelo saber da doutrina, Agostinho confessa que sentiu-se envolvido principalmente porque os maniqueus eram jovens como ele e amantes da diversão. “Suas outras qualidades sobrepujaram mais meu coração – conversas, risadas, concessões mútuas; leituras partilhadas de livros escritos de modo agradável, brincadeiras alternando com coisas sérias; argumentações calorosas (como se consigo mesmos) para condimentar nosso acordo unânime da discordância; ensinar e ser ensinado sucessivamente (...)”.(2)
O maniqueísmo era uma heresia cristã fundada no século III d. C. por Manés, que misturava as doutrinas de Zoroastro com o cristianismo. Tinha como pontos centrais em sua doutrina a crença na existência eterna de dois princípios, o bem e o mal, sendo que o bem é o próprio Deus, que domina o reino da Luz, e o mal, as próprias trevas, que é também substância. Estes dois princípios comunicam a sua substância aos seres, que são bons ou maus conforme a sua origem. Para os maniqueus, houve uma luta entre os reinos da luz e das trevas, no qual os demônios arrebataram partículas de luz. Satanás gerou Adão e comunicou-lhe estas partículas,que seriam as almas dos homens. Deus, para libertar a luz do cativeiro da matéria, criou o Sol, a Lua, os astros e a terra, sendo que esta é de matéria corrompida. O homem, para eles, é constituído de partes diferentes, cada uma com uma natureza. O corpo é matéria corrompida, oriundo do mal, e o espírito provém de Deus. O mal era, portanto, um princípio fundamental do sistema maniqueísta, e Agostinho se envolveu muito com questionamentos que diziam respeito à natureza do mal. Tempos após a sua conversão ao cristianismo, Agostinho incluiria nas suas “Confissões” o problema do mal, que, embora totalmente diferente da explicação maniqueísta, teria recursos para pensar esta categoria trazida da sua experiência juvenil.(3) Esta foi, sem dúvida, apenas uma das influências detectáveis do maniqueísmo na obra de Agostinho.
A doutrina maniqueísta é muito rica em detalhes, tendo uma natureza cosmológica e racional, e não nos cabe, neste momento, aprofundarmos nestas questões. O importante é frisar que Agostinho sentiu-se motivado pela nova experiência, pois ela tratava ao mesmo tempo de Deus e fornecia explicações de ordem racional (como desejava Agostinho). “A idéia de Agostinho do caráter intelectual do discernimento espiritual, seu desgosto pelos livros históricos do Antigo Testamento, sua necessidade urgente de respostas que o satisfizessem, tudo isto tornou-o receptivo destes ensinamentos”(4).
Por nove anos Agostinho se dedicou às discussões e à elaboração de pensamento maniqueísta. Graças ao seu interesse e à grande capacidade tornou-se um dos grandes expoentes maniqueus de sua época. Os esquemas maniqueístas pareciam combinar as vantagens da explicação cristã com as vantagens da explicação filosófica. “Os dados de seu (maniqueísta) sistema eram familiares em muitos pontos a um jovem que crescera em um lar cristão. Sustenta-se que Deus é inteira e sumamente bom, incapaz de qualquer mal; reconhece-se o homem como criatura composta, constituída de corpo e alma. A tarefa do homem é procurar o bem; ele só pode ver seu caminho por iluminação divina” (5).
Muitas das proposições de Agostinho nas “Confissões”com relação a Deus e sua natureza parecem vir da experiência maniqueísta. O Saltério Maniquel, texto que expunha as bases das crenças do maniqueísmo, permitiu, com certeza, que Agostinho pensasse filosoficamente certas categorias presentes no cristianismo apenas de maneira superficial. “O maniqueísmo forneceu a Agostinho as primeiras ferramentas experimentais para o auto-exame psicológico”(6). Após a conversão Agostinho passou a refutar sua experiência maniqueísta, como é evidente nas “Confissões”, onde ele afirma que foi enganado por falsas verdades, nas quais ele inocentemente cria.(7) Apesar disso, as noções adquiridas do contato com o maniqueísmo estão vivas, presentes em toda a sua extensa obra e seriam, por conseqüência, passadas à formulação da fé cristã medieval.
Agostinho retornou a Tagasta, sua cidade natal, em 375 d. C. e ali permaneceu por um ano. De 376 a 383 d. C. voltaria a residir em Cartago, agora como professor. Embora fosse um “dialético” maniqueísta competente e reconhecido, os argumentos do maniqueísmo já não eram suficientes para resolver suas inquietações filosóficas.As explicações através dos mitos cósmicos dos maniqueístas pareciam atrapalhar a descoberta racional de Deus. A última esperança: o grande sábio maniqueu Fausto, que Agostinho há muito desejava conhecer. O encontro entre os dois teve um tom de frustração para Agostinho, pois o “Venturoso” mostrou-se incapaz de responder às perguntas mais profundas sobre a verdade maniqueísta. “O que já me haviam dito foi-me apresentado por ele de uma maneira muito mais suave. Mas como coisas servidas em taças mais ornamentadas saciariam minha sede?” (8) O entusiasmo de Agostinho dava sinais de esgotamento. “Agostinho viu-se olhando mais fundo e mais freqüentemente em sua alma, e descobrindo sutilezas e complexidades que não eram explicadas pelas cores nítidas primárias da explicação maniquéia”.(9) Sua ida para Roma, em 383 d. C., e a permanência na Itália até 388 d. C. selaria seu afastamento do maniqueísmo.
Enxergamos Santo Agostinho como um homem inteiramente vinculado à realidade histórica do seu tempo. Seu pensamento demonstra com muita clareza que ele se encontrava num intervalo (numa transição, como prefere alguns) entre a cultura clássica e o pensamento medieval, cristão. A valorização da racionalidade, a busca do conhecimento de Deus por atividade reflexiva está muito presente em Agostinho. Legado do mundo clássico. Em contrapartida, a fé ocupa no seu pensamento uma posição central, fruto de um avanço significativo do cristianismo.
A experiência maniqueísta da juventude acompanharia Agostinho por toda a sua vida, embora ele lamentasse de tê-la tido. Mais do que influência pessoal, no seu modo de pensar e conceber o mundo, Agostinho transmitiria a toda a cristandade ocidental uma perspectiva maniqueísta da fé, em que o mal e o bem são forças contrárias presentes no homem e que rivalizam o tempo todo.
José Américo Mota Pessanha, num comentário sobre a vida e obra de Agostinho sintetiza bem o que queremos dizer: “Estava findando a Antiguidade e preparando-se a Idade Média. A nova era seria dominada pela palavra do bispo de Hipona, pois ninguém como ele tinha conseguido, na filosofia ligada ao cristianismo, atingir tal profundidade e amplitude de pensamento. Vinculou a filosofia grega, especialmente Platão, aos dogmas cristãos, mas quando isso não foi possível, não teve dúvidas em optar pela fé na palavra revelada. Combateu vigorosamente o maniqueísmo enquanto teoria metafísica, embora permanecesse visceralmente impregnado de uma concepção nitidamente dualista que contrapunha o homem a Deus, o mal ao bem, as trevas à luz.”(10)


A experiência maniqueísta (notas):
(1) Agostinho tinha formação cristã. Conhecia a base da fé, em parte graças à sua mãe, que desenvolvera nele uma necessidade espiritual vigorosa e o hábito da religião. Embora tivesse esta formação, o cristianismo ainda não tinha conseguido cativar Agostinho, pois pareceu-lhe, de início, que os cristãos não estavam aptos a responder as suas indagações. “Aos catecúmenos era comum se ocultar as coisas profundas da fé, sendo estas acessíveis apenas aos batizados. O efeito disso foi o encorajamento de Agostinho a rejeitar o cristianismo, pois achava ‘sem imponência a sua fachada’” EVANS, G.R.. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995. Pág.23 .Esta é uma das explicações possíveis à não conversão imediata de Agostinho.
(2) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág. 86 (livro III, 6)
(3) Os maniqueístas viam o mal como uma coisa concreta, que existe e que convive com o bem. Já Agostinho pensaria o mal como a ausência da Luz. Deus é o Bem supremo, é a Luz que ilumina todas as coisas. Onde brilha esta Luz não há trevas. Assim, Deus é o criador de tudo, é o “Ser”. Nada que provém da Luz pode ser mal; então tudo (já que Deus é o criador de tudo) é por natureza bom. O mal passa a se constituir no Não-Ser. O homem, quando se afasta de Deus (da Luz) por seu livre arbítrio aproxima-se, por conseqüência lógica, das trevas. “Perturbava-se a minha ignorância com estas perguntas. Assim, afastava-me da verdade com a aparência de caminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenas a privação do bem, privação cujo termo é o nada”. AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág. 88 (livro III, 6)
(4) EVANS, G.R.. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995. Pág.29
(5) EVANS, G.R.. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995. Pág.31
(6) WILLS, Garry. Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Objetiva,1999. Pág.51
(7) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág. 88 (livro III, 7)
(8) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág.128 (livro V, 5)
(9) EVANS, G.R.. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995. Pág 34
(10) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág.23

Um resumo da Ditadura Militar

O período de 1964 à 1985 traz más lembranças, porém, o fim da ditadura militar marca a saída definitiva dos militares do cenário político nacional.
Getúlio Vargas chegou ao poder com o apoio dos militares em 1930 e para se manter 15 anos teve que fortalecer cada vez mais o exército. Estes militares forçaram a saída de Getúlio, que redemocratizou o Brasil em 1945, e o primeiro presidente eleito foi o seu Ministro de Guerra, o general Dutra. Em 51, Vargas voltaria a assumir a presidência, mas mata-se pressionado, inclusive, por militares.
O próximo presidente eleito em 1956 foi Juscelino Kubitschek que superou a tentativa de golpe por parte do General Lott. Restabelecido o mandato de JK ele construiu Brasília.
De Juscelino o Brasil foi para o polêmico Jânio Quadros em 1961 que renunciou após sete meses de mandato. Seu vice era João Goulart, que se encontrava na China Comunista em plena Guerra Fria. Jango governou sobre o regime parlamentarista imposto pelos militares até 1963, quando passou a governar com poderes plenos e começou suas “reformas de base”, que atemorizou os anticomunistas. As manifestações populares contra, foram a deixa para o golpe militar de 31 de março de 1964.
Assumiu o marechal Castelo Branco que governou até 1967. Em 1968 começariam os períodos mais duros com o Ato Institucional Nº 5, ou AI-5, editado por Costa e Silva. Assumiria em 69 o principal representante entre os “linha-dura”: Garrastazu Médici. Toda a intelectualidade estava fora do Brasil. A crise do petróleo, 72, abalou o governo e em 1974 Médici saiu do poder com o “milagre econômico” em declínio. Até 79 governou Ernerto Geisel, que começou o processo de abertura.
A eleição governamental de 1982 demonstrou o fracasso do regime com os principais estados brasileiros caindo nas mãos da oposição. Quem governava era Figueiredo, que em 1985 permitiu eleições presidenciais entre dois civis: Paulo Maluf e Tancredo Neves. Este último venceu e finalizou os anos de chumbo. De lá para cá os fantasmas dos militares não assombraram mais os presidentes da república.

Apple e Beane e o ensino democrático da Escola Nova

Um ensino democrático é sintetizado por M. Apple e J. Beane. Eles juntaram as teorias de Dewey, principalmente, e de outros autores do ensino democrático dando um corpo que torna mais visual e palpável as propostas dentro do título “Escolas Democráticas”.
Antes de tudo os próprios autores tentam definir o que é democracia, o que com estrema dificuldade não chegam a uma conclusão objetiva mas encontram conceitos que servem para ilustrar o que seria o modo ideal do pensar democrático.

Outros estão comprometidos com a idéia de que o modo de vida democrático é construído sobre as oportunidades de descobrir o que é esse modo de vida e como ele deveria ser conduzido. Acreditam que as escolas, como experiência comum de praticamente todos os jovens, tem a obrigação moral de lhes apresentar o modo de vida democrático. Sabem também que esse modo de vida se aprende pela experiência. Não é um status a ser alcançado só depois que as outras coisas são assimiladas. Além disso, acreditam que a democracia se estende a todas as pessoas, inclusive aos jovens. Por fim, acreditam que a democracia não é incômoda nem perigosa, que pode dar certo nas sociedades e nas escolas. (p. 18)

De fato, os autores acreditam que a sociedade ainda não encontrou o verdadeiro sentido da democracia, atribuindo-a ao governo exercido, ao voto e, por vezes, utilizada como argumento para conseguir o que se quer: “isso (não) é democracia”. Neste sentido seria um conceito flexível. Enquanto pessoas desacreditam, outros a justificam como argumento para tudo. Mas segundo Apple e Beane, quem teve a boa e verdadeira democracia, não abriria mão dela, deixando-a de legado para seus filhos e netos.
Porém se o conceito de democracia não fica tão objetivo, os educadores sabem muito bem o que querem das escolas democráticas. A começar pelos pontos enumerados que representam as principais preocupações centrais dessas escolas. Seriam estes o livre fluxo das idéias; capacidade individual e coletiva de as pessoas criarem condições de resolver problemas; o uso da reflexão e análise crítica para avaliar idéias. Preocupaçãi para o bem-estar de outros e com o bem comum; preocupação com a dignidade e os direitos do indivíduo e das minorias; a compreensão de que a democracia é um conjunto de valores “idealizados” que regulam a nossa vida. (p. 17) Então o texto “Escolas Democráticas” estabelece as pretensões que uma escola assim deve almeijar:

As escolas democráticas pretendem ser espaçoe democráticos, de modo que a idéia de democracia também se estenda aos muitos papéis que os adultos desempenham nas escolas. Isso significa que os educadores profissionais, assim como os pais, os ativistas comunitários e outros cidadãos têm o direito de estar bem informado e de Ter uma participação crítica na criação das políticas e programas escolares para si e para os jovens.

Essas escolas são resultados de tentativas de dar vida à democracia em sala de aula através de duas linhas de trabalho: “uma é criar estruturas e processos de democráticos por meio dos quais a vida escolar se realize. A outra é criar um currículo que ofereça experiências democráticas”. Isto quer dizer que todos aqueles diretamente envolvidos com a escola, dentro e fora dela, tem o direito de participar das tomadas de decisões e em sala de aula, professores e alunos envolvendo-se nos planejamentos disáticos, chegando a consensos que agradam ambas as partes. Com isto, visaria, não só o crescimento de cidadania do estudante, como também findar a competição em classe (p. 20-22).

Ora, dentro das escolas aqui descritas, é impossível que uma mudança haja sem que seja trabalhado de maneira especial o currículo, isto é, democratizar a formação e criação curricular. Com que objetivo? Ampliar suas idéias e expressar as que já tiveram.
Lógico que seria fundamental que o meio social em que o estudante vivesse fosse todo igualmente democrático, ou seja, em que os jovens são leitores críticos da sociedade. Porém tal leitura caberá à escola oferecer, expandindo-se da escola para fora enquanto não se torna uma pista de mão dupla. Agindo em cooperação com o currículo da escola, os alunos abandonarã o papel passivo de “consumidores do saber”, e passarão a ser “elaboradores de significados” (p. 30).
O currículo deve também ser aberto à comunidade, pois trabalhará questões da vida coletiva ao redor do aluno. Assim trataria dos conflitos, o futuro e a justiça na comunidade em que vive o alunos, por exemplo.

Numa sociedade democrática, nenhum indiv;iduo ou grupo de interesse pode reinvidicar a propriedade exclusiva do saber e dos significados possíveis. Da mesma forma, um currículo democrático inclui não apenas o que os adultos julgam importante, mas também as questões e os interesses dos jovens em relação a si mesmos e a seu mundo.

Mas a implantação deste sistema enfrenta diversas barreiras. Entre eles, Apple e Beane citam a exaustão e os conflitos devido às escolas serem instituições historicamente antidemocráticas, principalmente com as miorias. Mas os principais problemas se encontram quando se deparam com os que se beneficiam das desigualdades ou com os que se interessam no poder hierárquico. Todavia, como enfatizam os autores, uma experiência democrática se constrói mais por meio de esforços repetidos que fazema diferença (p. 24-25).
Para a implementação de um currículo democrático, muitas escolas evitam o assunto sabendo que estão restringindo o conhecimento transmitido, o cnhecimento oficial, produzido pela classe (cultura) dominante; também, nos moldes velhos de currículo, silencia-se as vozes da cultura oprimida, o que está claro nos livros didáticos. Ora, as condições vigentes são antidemocrática, cabendo aos professores romperem com isto, em eterna tensão, ao mesmo tempo em que transmitem conhecimentos dos grupos educaionais no poder.
Por fim o desinteresse em jovens mais preparados criticamente está, dentro das escolas, acompanhado do medo da análise aguçada que podem levar os estudantes a questionarem o conhecimento escolar e dominante, levando-os a questionar problemas sociais ainda maiores. E a participação no currículo também ameaçam revelar as contradições éticas e políticas, fazendo com que o aluno questine valores que a escola diz defender ou afastando os discentes deles (p. 32).
Como visto, Apple e Beane são muito mais críticos e perfuram muito mais as questões que permeiam a educação do que Dewey, ainda que este seja a grande referência teórica dos dois primeiros. Embora a opinião do texto Escolas Democráticas seja de que não se trata de algo tão difícil de ser posto em prática, no fundo eles são mais pessimistas, ou como diria Umberto Eco, “apocalipticos”. Mas isso é uma outra história para um outro por-do-sol.

Historiografia do Regime Militar

A partir do dia 31 de março de 1964 o Brasil começou a vivenciar o início de um regime militar que duraria mais de 20 anos. Cinco presidentes assumiram o cargo máximo do poder executivo, ou seja, a presidência da república. Foram eles o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967); o Marechal Artur da Costa e Silva (1967-1969); o General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974); o General Ernesto Geisel (1974-1979); e o General João Batista Figueiredo (1979-1985). Todos se utilizaram de maneiras de coerção contra os opositores do regime.
Entretanto os momentos de maior coibição da população de uma maneira geral foram os governos presididos pela chamada “Linha Dura”, que se entende pelos mandatos de Costa e Silva e de Médici.
Ao mesmo tempo em que o “Milagre Econômico” era exaltado pelo Regime elevando o Brasil à condição de oitava potência econômica mundial, grupos de jovens estudantes, jornalistas e todas as demais categorias populares que ousavam protestar contra os militares eram duramente perseguidos, torturados, morrendo alguns nas prisões, como no famoso caso de Herzog (1) , ao passo em que outros brasileiros tinham que deixar o Brasil mesmo amando-o para não entrarem para a estatística de desaparecidos, que crescia ainda mais com a formulação do Ato Institucional Número 5, mais conhecido por AI5, no final do ano de 1968.
Em meio a tanta repressão, a parte da população que via o regime com críticas tinha ainda um último recurso para reproduzir a sua ideologia e suas injúrias: a arte, em especial a música.
Curiosamente ao mesmo tempo em que o regime se organizava, também se estruturava enormemente e cada vez com maior poder a indústria fonográfica, fazendo com que a música popular brasileira se instituísse como sigla de protesto para jovens de classe média urbana que viam nesta maneira empolgante de reclamar –cantando –os hinos para um novo exército cuja arma era basicamente o violão e a munição as letras, que direcionavam críticas explosivas aos militares.
Por sua parte, os militares não se faziam de rogados e respondiam às críticas com seu enorme aparato militar, uma máquina de investigação e coerção que ia desde censuras simples –como bilhetes, causando um efeito moral e psicológico, não menos eficaz e silenciador –até métodos de agressões físicas que causavam por vezes, como dissemos anteriormente, até a morte.
Por ser um período que se passou a menos de 20 anos, podemos então considerar os estudos sobre o regime militar como uma corrente da historiografia intitulada História do Tempo Presente. Como esta corrente não é em si o nosso objeto de pesquisa, tampouco iremos nos ater a ela. Fica claro apenas, seguindo a fácil nomenclatura, que os historiadores dessa corrente são os que estão empenhados em escrever sobre o período histórico em que viveram, tal como fez Eric Hobsbawn em seus livros Era dos Extremos e Tempos Interessantes, Voltando ao que é mais próximo de nosso objeto de pesquisa, que é o regime militar, dele muito se escreveu durante os próprios “anos de chumbo”, mas principalmente depois dele. Uma vasta literatura historiográfica foi deixada sobre o tema, tanto do ponto de vista dos militares quanto pela visão dos opositores. Até mesmo o norte-americano Thomas Skidmore escreveu uma de suas principais obras sobre o período: Brasil: de Castelo a Tancredo, dando prosseguimento a suas pesquisas sobre a política brasileira que já havia gerado a importante obra –ainda que complicada do ponto de vista historiográfico devido aos pressupostos do autor –Brasil: de Getúlio a Castelo, que a rigor é muito importante para entendermos as razões do golpe militar de 1964, mostrando até documentos da participação do exército americano aos militares brasileiros.
Desta maneira, se tantas obras foram escritas por tantos pontos de vista e tantas ideologias envolvidas, é mister que esta pesquisa centro suas atenções em um foco mais específico Assim, partiremos agora para uma nítida e clara definição do objeto de pesquisa a ser analisado neste trabalho, qual seja a censura à música durante o regime militar revisada por historiadores a partir dos anos 90.
Temos então o nosso objeto, que é a censura na música; o período: durante o regime militar; o enfoque, que é o historiográfico; e um recorte, por trabalharmos apenas pesquisadores que analisaram o período do regime militar e sua relação com a música a partir dos anos de 1990.
A importância deste recorte se deve ao breve afastamento que estes autores tiveram do momento em que o regime militar terminou até que suas obras fossem publicadas. Ainda que parece sutil os poucos cinco anos que separaram o fim do regime em 1985 até o início da década de 1990, fica claro para a historiografia que é tempo suficiente para que o pesquisador deixe um pouco de lado o que foi vivenciado em prol de uma pesquisa menos parcial.
Outra diferença entre escrever uma obra do referente período logo após 1985 e, por exemplo, dez anos depois em 1995, é que toda uma gama de obras, pesquisas e documentos já estão circulando, permitindo uma pesquisa mais embasada.
Ainda podemos citar como diferencial de uma obra nos anos 90, a fato de que as pressões sociais sobre uma obra são distintas, quer dizer, a historiografia logo após o fim do regime militar segue um viés quase que exclusivamente de esquerda, deixando em maus lençóis autores que abordassem qualquer visão que pudesse ser taxada de liberal. Isto, claro, em função de o Brasil haver recém saído de uma repressão de extrema direita em que a esquerda reprimida, libera sua voz em um grande grito que almeja ser escutado, agora, sem barreiras, sendo toda e qualquer versão liberal antes vista como advogada do diabo do que como enriquecedora do debate sobre o tema. Dessas pressões não sofreram os historiadores da metade para o final da década de 1990. Mesmo porque a vitória de Fernando Collor sobre Lula deixou claro que o liberalismo tinha lugar presente e força suficiente para suplantar um representante popular que desejasse chegar ao poder.
A partir daqui podemos partir para o debate historiográfico no qual explanaremos cada um dos autores que serão utilizados. Todos eles acadêmicos de História, com um compromisso científico com relação ao relatado. Não menosprezando as diversas versões jornalísticas que surgiram por toda a década de 1990, mas apenas para aclarar que os compromissos dos que aqui citaremos é com uma versão mais verossímil com o acontecido através de uma metodologia de pesquisa que, claro, não necessariamente despreza o que tais autores possam ter vivido durante o regime militar.
Os autores seriam Ramon Casas Vilarino, Marcos Napolitano, Alberto “Moby” Ribeiro da Silva e Semi Cavalcanti de Oliveira. De todas estas obras a mais importante para entender o referente objeto seria o livro Sinal Fechado (2) , de Alberto Ribeiro da Silva, seguido de A MPB em Movimento: Música, Festivais e Censura (3) . As demais obras são Cultura e Poder no Brasil Contemporâneo (4) , de Napolitano; e Irreverências Mil prá noite do Brasil (5) , de Oliveira. Comecemos então pelo livro de Vilarino.

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Em seu livro publicado na metade de 1999, Vilarino não apresentas grandes novidades sobre nenhum dos três temas estampados na capa de seu volume: música, festivais e censura. No que se refere à música sim, uma suave contribuição já que esta permeia da primeira a última página da obra. Mas a metodologia do escritor não é em nada ousada. Na medida em que narra os fatos históricos ocorridos durante o regime militar, relaciona-os com a música e em seguida apresenta uma letra que obteve alguma projeção midiática no período, principalmente nas projeções oferecidas pelos inúmeros festivais de música que tinham espalhados por todos os canais de televisão, como Globo, Record, Excelsior e Tupi.
Após apresentar uma letra de música, faz uma interpretação das músicas, incluindo, em suas interpretações, uma análise da melodia e das composições musicais como um todo, prendendo-se majoritariamente ao significado das palavras no contexto histórico em que determinada música foi apresentada.
A importância destas análises para o trabalho que pretendemos desenvolver é que tais letras dialogavam diretamente com a censura, mostrando que ao mesmo passo em que os militares reprimiam seus opositores, a música ainda se mostrava como espaço de resistência. Vilarino deixa claro que a partir da edição do AI5 isso começa a mudar e a música sofre de um vazio ideológico e mesmo físico, entendendo aqui como físico a ausência dos principais nomes da música brasileira a medida em que os anos se passavam após o AI5.
Os festivais televisivos são importantes para entender o espaço que os cantores tinham de se apresentar, que agora não se restringia aos palcos simplesmente, mas eram passados em todo o Brasil pela TV, num momento em que a indústria fonográfica e a televisiva cresciam assustadoramente, aumentando o trabalho e a preocupação do exército. Os militares sabiam que os principais consumidores de televisão eram membros da classe média e eram os jovens dessa classe também os principais consumidores de música, pela qual se identificavam na sigla institucionalizada MPB.
Qualquer ato de “subversão” da parte dos cantores que se apresentavam na televisão, em especial nos festivais, seria visto em diversos Estados do Brasil e influenciariam diversos jovens. Assim os militares se armaram para impedir que determinadas músicas ganhassem ou mesmo que fossem classificadas para as finais.
Desta maneira, a parte que Vilarino trata de censura, está toda relacionada culturalmente com a música e a televisão, fechando o ciclo a que o autor se propunha no título da obra.
Se de tudo o que o autor apresenta, nada vem a ser novidade, ao menos os documentos do DOPS apresentados em trechos, configuram algo interessante para o leitor, mas que em si adicionam pouco ao debate historiográfico feito até então.


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Na sua dissertação de mestrado defendida em 1998 na Universidade Federal do Paraná, Semi Cavalcanti de Oliveira pretendia discutir a posição que a canção popular engajada (6) assumiu na recusa em aceitar a situação vigente, e, como a palavra cantada adquiriu um forte poder de penetração em determinados segmentos, no qual o poeta metaforicamente induzia à união contra o regime militar, com o objetivo de mobilizar a população para a oposição as vezes até para a revolução (7) .
Este mesmo enfoque do uso de metáforas foi também abordado por Vilarino, com a diferença que este, se pudermos dizer que enfoca algum cantor em especial, o cantor seria Chico Buarque. Semi, como a maioria dos historiadores que trabalham música neste período, também dedica numerosas e valiosas páginas para analisar a obra de Chico Buarque, porém o seu estudo de caso é centrado verdadeiramente nos cantores Aldir Blanc e João Bosco.
O que faz de sua dissertação valiosa para nosso estudo é que estes cantores, Bosco e Blanc, embora engajados e, portanto, confrontando a censura, são compositores que despontaram no final do regime, ou seja, da segunda metade para o final dos anos 70.
Dentro do contexto de sua obra, o que fica de mais importante para um maior debate sobre música e censura durante o regime militar, é que, segundo semi, as razões que movem a repressão nas canções engajadas, ou seja, “a lógica da censura pautava-se na proibição da circulação da palavra política, ou seja, se a palavra não circulasse, não teria eficácia política e, consequentemente, não estimularia uma mobilização geral”. (8)
Semi faz uma explanação sobre o golpe retomando a crise do populismo e a ebulição dos movimentos populares que cresciam desde os primeiros anos da década de 60, a exemplo do CPC (9) , tal como aborda os primeiros movimentos musicais de confronto ao regime como o “show Opinião” (10) , ainda em 1964. Mas o que fica interessante para debatermos a censura é que o próprio Semi faz um debate historiográfico com os autores que já haviam trabalhado o tema antes dele, como Renato Ortiz. Assim, Oliveira aponta o “amadurecimento”, ou, como ele próprio conceitua, a “evolução da censura” (11) , de patrulhamento ideológico e político.
Outro aspecto interessante que deixa a dissertação de Semi é o fato de apontar que o censor atingia a especificidade da obra, mas não sua produção, pois o próprio regime militar desejava era utilizar as obras artísticas e o renome dos artistas para a divulgação de suas idéias, criando diversas instituições como a Funarte, Embrafilme, etc. para estimular a produção e até o êxodo de artistas para o lado ideológico do regime (12) .
Vale lembrar, já que foi dito da contribuição de Vilarino, que Oliveira também contribui pouco com novidades. As duas obras foram escritas no final dos anos 90, já sendo temas batidos no que diz respeito à historiografia. Mas não deixam de trazer novas questões à mesa de discussão.

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Já Marcos Napolitano tem uma consistente obra referente à música durante o regime militar. Todavia nem todas têm como centro das discussões a censura na música, muitas vezes trabalhando a MPB como instituição durante os anos 60 e 70. Desta forma, dentre todos os livros e artigos publicados pelo professor da Universidade Federal do Paraná, a que escolhemos foi Cultura e Poder no Brasil Contemporâneo. O livro já foi publicado no início do ano 2000, mais especificamente em 2002.
O tema central da obra é a questão do anseio pela democracia que surgiu ao longo da resistência civil contra o regime militar, em especial na grande São Paulo. Este é mais um título que trabalha o regime militar e a cultura na fase final dos anos de chumbo, desembocando nas “Diretas-Já”.
Neste período tratado por Napolitano, já haviam as primeiras manifestações populares de protesto nas ruas e o ponto central da luta que unia diversas profissões, classes e mesmo ideologias, girava em torno do paradigma da democracia.
Do contrário de outras obras de Napolitano, esta enfoca mais o aspecto político –através de seus protagonistas –que os aspectos culturais, saindo inclusive um pouco mais do tema música, objeto central de suas pesquisas anteriores (não esquecendo que em 1998 Napolitano lançou O Regime Militar Brasileiro, no que foge quase que inteiramente do aspecto cultural, mas este é um livro quase didático, não podendo estar incluído dentre as principais pesquisar do autor).
A visão que Napolitano deixa sobre a crise do regime através da censura é muito importante para a historiografia. Parte da morte de Vladimir Herzog no dia 25 de outubro de 1975 e anunciada discretamente pela Folha de São Paulo com os dizeres “II Exército anuncia suicídio de jornalista” (13) . A foto publicada pela imprensa mostrava que não poderia ser um suicídio.
Segundo Napolitano, “era o primeiro corpo que não desaparecia, dentro de um órgão da repressão militar” (14) . Para o autor, esse erro “técnico” dos torturadores poderia ter o objetivo de mostrar à sociedade e ao governo Geisel que a “comunidade de segurança” estava viva e atuante. Enfim, foi um recado da linha dura para Geisel como demonstração de seu descontentamento com o projeto do governo de distensão/abertura. Em janeiro de 1976 morreria o operário Manuel Filho nas mesmas circunstâncias, fazendo com que Geisel exonerasse o comandante do II Exército e ninguém mais fosse morto no DOI-CODI até o fim do regime.
Com isso, podemos notar neste livro de Napolitano tanto a atuação da censura, como suas linhas de proposta de ação. Também é possível perceber a crise do regime de censura através das divergências entre os militares e do anseio do povo brasileiro que, com estes eventos, foi definitivamente às ruas lutar pela bandeira da democracia.
Mas o regime não ficou quieto e, em reação à convocação para um culto ecumênico em homenagem ao jornalista Herzog, divulgou uma nota dizendo que toda “agitação será coibida e eventuais agitações de estudantes, sindicatos, operários e outros setores extra jornalísticos (...) interminável sucessão de missas e outras atividades que perturbem a ordem pública acarretarão imediata e eficaz repressão dos organismos de segurança” (15) .
Todavia a nota ressalta que haveria tolerância quanto a “manifestações pacíficas, despidas de caráter político”. Podemos através disto discutir as manifestações que não deixariam de ocorrer dali por diante. Poderíamos também debater o declínio dos órgãos coercivos a disposição do Estado, frente o anseio da população que estava sobre a promessa de uma futura abertura.
Com exemplos como este, Napolitano segue demonstrando como gradualmente o desejo de democracia foi sobrepujando a força coerciva dos censores e de como estes reagiam cada vez mais cautelosamente até a abertura definitiva em 1985.

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Por fim, o principal título para entender o Brasil sob censura durante o regime militar. Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-45/1969-78), é um livro escrito em 1994 e que traz elementos importantíssimos para entender a estruturação do sistema de coerção montado pelos censores militares.
Alberto “Moby” Ribeiro da Silva trabalha em metade de seu livro as ações do DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, constituído durante o Estado Novo (1937-1945) por Getúlio Vargas e que serviu de modelo para a formação da censura durante o regime militar.
Além de uma abordagem mais ousada que as de Vilarino e Oliveira, Moby –como Alberto prefere ser chamado –traz matérias de jornais e revistas do período relacionado à música e às leis de censura tanto do Estado Novo como do Regime Militar. Também relaciona depoimentos dos cantores sobre a censura que eles sofriam; depoimentos colhidos ainda durante os anos 70 e 80, que demonstram a angústia que artistas como Chico Buarque, Gilberto Gil e outros sofriam por suas palavras, analisando tudo isso com o contexto histórico da época.
Vale lembrar que do contrário de Vilarino e Semi, Moby mal coloca letras de músicas para ilustrar sua tese, prendendo-se aos fatos musicais e ao cotidiano dos músicos diante de um governo que punia a liberdade de manifestação caso essa fosse contrária aos ideais do regime.
Este livro, Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-45/1969-78), é conseqüência da dissertação de mestrado de Moby e deve ser lido por todo e qualquer pesquisador que almeja pesquisar a censura nos regimes ditatoriais brasileiros em função do fio condutor de toda essa obra, isso é, a necessidade que os regimes ditatoriais no Brasil têm de se fundar em leis –nos termos jurídicos- suas ações coercivas, ou seja, demonstrar a si mesmos e a população que suas ações a princípio inibidoras, estão de acordo com as leis, justificando, entre outras razões, o porque de a população ter de seguir as imposições.
Da dissertação de Moby saiu o artigo A Curta e Profícua Vida de Julinho da Adelaide, publicada na revista História: Questões e Debates de julho a dezembro de 1999, organizada pelo professor Marcos Napolitano.
Este artigo fala exclusivamente das maneiras que Chico Buarque tentava fugir da censura, pois ele era o mais caçado pelos censores. Como quase tudo que Chico produzia já era previamente censurado, ele criou um pseudônimo para lançar músicas: Julinho da Adelaide. Funcionou mais por pouco tempo. Através do Jornal do Brasil a censura descobriu e Chico teve de prestar contas.
Portanto essa obra fala diretamente da relação cotidiana que os cantores dos anos 70 tinham com a censura e de como faziam para driblá-la, utilizando-se desde metáforas até pseudônimos, analisando músicas, matérias lançadas na imprensa, documentos dos censores e depoimentos dos artistas.


1- O jornalista Vladimir Herzog era um profissional da TV Cultura que havia sido preso no dia 25 de outubro de 1975 pelo DOI-CODI, que seria o Departamento de Operações Internas –Comando de Operações de Defesa Interna. Segundo a versão dos militares, Herzog havia se suicidado e para provar a versão deles, divulgaram uma foto na qual Vladimir aparecia pendurado pelo pescoço numa tira preso à janela. Suas pernas apareciam dobradas, pois a janela era baixa, o que tornava a versão a versão oficial ainda mais verossímil: In: NAPOLITANO, M. Cultura e Poder no Brasil Contemporâneo, Curitiba: Juruá, 2002, P. 60.
2- SILVA, A. R. Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-45/1969-78), Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994.
3- VILARINO, R. C. A MPB em Movimento: Música, Festivais e Censura, São Paulo: Olho Dágua, 1999.
4- NAPOLITANO, M. Cultura e Poder no Brasil Contemporâneo, Curitiba: Juruá, 2002.
5- OLIVEIRA, S. C. Irreverências Mil prá Noite do Brasil, dissertação de mestrado, UFPR, DEHIS, 1998
6- Entendemos aqui como engajada, toda a música ou obra artística de esquerda ou que de alguma maneira pretenda confrontar o regime militar, o que descarta os movimentos de desbunde do tropicalismo ou o iê, iê, iê de Roberto Carlos.
7- OLIVEIRA, S. Op. Cit. P.122
8- op. cit. P. 12
9- Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, que visava levar a arte engajada às massas instigando-as à revolução.
10- Show liderado por Nara Leão, João do Vale e Zé Keti que mostrou-se como a primeira manifestação artística contra os militares em dezembro de 1964.
11- Op. cit. P.20.
12- Op. cit. P.21-2.
13- NAPOLITANO, M. Op. Cit. P.60
14- Id. Ibd. Id.
15- Op. cit. P.20.

Uma breve biografia de Rousseau

JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Em Genebra, a 28 de junho de 1712, nascia Jean-Jacques, filho do relojoeiro e mestre de dança Isaac Rousseau e de Suzane Bernard, que morreria oito dias após o parto. Sua tia paterna ficou com o menino enquanto o pai viajava para Constantinopla a trabalho. Rousseau aprendeu a ler com a tia, que lhe enviou ao Pastor Lambercier, em Bossey. Após dois anos Rousseau foi expulsou do local, acusado de roubo. Indo à casa do cura de Confignon, este notou em Rousseau conflitos intensos. Enviou-o com uma carta à Senhora de Warrens, residente em Annecy, convertida ao catolicismo. Jean-Jacques tinha 16 anos e se impressionara com a mulher. O objetivo do cura era ganhar mais um converso, mas a Senhora de Warrens enviou o rapaz para Turin. Em 1728 Rousseau converte-se ao catolicismo. Termina por virar secretário da Senhora de Vercellis. Com a morte da patroa acusam-no de furto e o expulsam sem escutar explicações. Vai parar em um seminário em que fica quatro meses e logo depois passa a dedicar-se a música.
Rousseau vai à Paris em 1741 para apresentar a Academia de Ciência seu trabalho musical. No hotel que residia conheceu Thárèse Le Vasseur com quem se envolveu, dificultando seu sustento. Através da música fez-se amigo de Voltaire. No ano de 1749 a Academia de Dijon instituiu um concurso temático de textos no qual Jean-Jacques ganhou com seu Discurso sobre as Ciências e as Artes. Estava lançado o pensador, o que não o salvou de suas dificuldades econômicas. Em 1753 participou de outro concurso da mesma academia com a obra Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os homens. Neste ano volta ao protestantismo, pois sua cidade o tinha em conta a não ser por se tratar de um suíço católico. Mas com a publicação do Discurso, Genebra o repudia, e o próprio Voltaire, vivendo na Suíça, condena-o em tons sarcásticos. Rousseau abandona Genebra e publica Lettre sur la Providence, endereçado a Voltaire e outros títulos.
Em 1762 o Contrato Social é editado em Amsterdã. No mês seguinte Emile é lançado em Amsterdã e em Paris simultaneamente. O livro é condenado a fogueira e o autor à prisão. Este refugia-se no interior da Suíça, mas ali chega a mesma sentença, levando Rousseau a refugiar-se em território Prússio. Porém Voltaire publica um panfleto que impossibilita a permanência do suíço neste território e Rousseau vaga por Estrasburgo, Londres, Normandia, Bourgoin (onde casa-se com Thérèse).
Rousseau morreu no castelo de um admirador seu, o Marquês de Girardin, no dia 2 de julho de 1778. Ninguém mais do que ele foi cultuado pelos revolucionários de 1789.

VOLTAIRE E ROUSSEAU: duas faces do iluminismo

Introdução

Lembro-me de quando fiquei sabendo que poderia apresentar um seminário a minha escolha para a disciplina de História Moderna II: fui logo até a professora e pedi que me fornecesse um tema. Infelizmente eu estava atrasado e quase todos os disponíveis já tinha sido escolhidos por outros grupos de alunos. Restava apenas Rousseau, o que, de início me neguei a confirmar com a professora, desculpando que iria montar um grupo de apresentação.
Estava acabado. Interessava-me o Voltaire, mesmo porque já havia lido o livro Cândido ou otimismo e acreditava, não sei porque cargas d’água, que Rousseau era chato. Procurei o grupo de Voltaire, mas este já estava em seu limite. No dia seguinte confirmei tristemente à professora que ficaria com o suíço de Genebra. Ela falou que eu ia adorar o texto Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Confesso que duvidei, mas foi iniciar o texto e comprovar que ela estava certa. Ainda não consegui livrar minha cabeça das idéias que recebi. Em todos os trabalhos posteriores que apresentei o citei. Mesmo quando, na aula de Legislação e Ética, em jornalismo, enquanto discutia Jean Baudrillard e a sociedade de consumo tecnológico, tive que citar Rousseau, é necessário divulgar a idéia desse autor.
Entretanto quem me ouvir falando pensará que arrasei no trabalho. Não. Foi, na minha concepção, um fracasso do qual fiquei na dívida com todos os que me escutaram e também com Rousseau, que merece algo melhor. Por isso insisti no tema.
Tirando por mim, um estudante de História do século XXI, imagino como ficou o europeu do século XVIII, com as idéias revolucionárias que chegaram a ser proibidas na universidade de Coimbra, para que a elite das colônias não lesse um discurso contra a autoridade e a desigualdade. (CARVALHO, J.M. A construção da ordem, Rio de Janeiro, 1996)
Um pouco de metodologia

A minha proposta inicial era de relacionar Voltaire e Rousseau e procurar, em suas próprias obras, onde se encontravam e divergiam os dois autores, assim como qual deixou maior legado para o futuro. Posteriormente mudei de idéia: iria analisar apenas Jean-Jacques, pois apenas este já era material suficiente de estudos. Mas voltei atrás e tentarei por em prática a proposta inicial.
Porém é importante ressaltar que a disputa a qual porei entre os dois pensadores é desigual. Primeiro porque apaixonei-me demasiadamente por Rousseau e seu espírito contestador, segundo, e em função da primeira, que as fontes pesquisadas de Rousseau são mais densas e variadas.
Li o Discurso Sôbre as Ciências e as Artes, Discurso Sôbre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, O Contrato Social, além do livro Rousseau uma arqueologia da desigualdade, de Olgária C. F. Matos. Quanto a Voltaire li apenas Cândido ou Otimismo, o que é muito pouco para compará-lo com o primeiro a não ser que se busque tão somente desmerecer o pensador.
Assim, iniciarei com uma comparação entre as biografias de cada um para analisar seus encontros e choques com o(s) poder(es). Passarei em seguida por um breve resumo das obras citadas –sendo mais sucinto com Rousseau, pois seu material aqui é mais vasto- e logo depois relacionarei os autores, concluindo em seguida. Se lograrei êxito, não sei, mas seguramente será um desafio cutucar essa cobra de duas cabeças com uma vara tão curta: meu pouco conhecimento.

Voltaire e Rousseau: uma cobra de duas cabeças

Em 1694 nasceu, em Paris, François-Marie Arouet, mais tarde chamado de Voltaire. Jovem, cursou a faculdade de Direito e por influência do pai conseguiu um emprego como secretário pessoal do Marquês de Châteauneuf. Esse trabalho facilitou seu acesso à corte de Paris, onde aos 21 anos se destacou pela inteligência e espírito. Porém morreu Luís XIV, ficando como regente o Duque de Orléans. Como Voltaire animava os salões com piadas do Duque, este resolveu pôr Voltaire, em 1717, um ano na prisão da Bastilha. Lá escreveu a obra Édipo, que teve grande sucesso, garantiu sua saída da prisão, além de uma gorda pensão que o sustentaria toda a vida. Após uma briga com o Duque de Sully em 1726, teve que ir para a Inglaterra ou voltaria à prisão.

Em Genebra, a 28 de junho de 1712, nascia Jean-Jacques, filho do relojoeiro e mestre de dança Isaac Rousseau e de sua mulher Suzane Bernard, que morreria oito dias após o parto. Outra Suzane viria a cuidar dele, era sua tia paterna que ficou com o menino enquanto o pai viajava a trabalho em Constantinopla, estando difícil em Genebra.
Rousseau aprendeu a ler com a tia, que lhe enviou ao Pastor Lambercier, em Bossey, que após dois anos o expulsou do local acusando-o de Ter roubado o pente da Srta. Lambercier, irmã do pastor. Foi severamente punido, tendo ficado gravado o resto da vida tal injustiça, fazendo-o inimigo de todas as demais injustiças, como diria em suas Confissões. Tendo que seguir uma profissão, Jean-Jacques trabalhou em uma oficina de um gravador tirano, no qual respondia contra sua exploração com pequenos furtos.

Na Inglaterra Voltaire ficou encantado com o sistema político em que o rei não governava sem o parlamento, acreditando estar o país em um momento histórico mais avançado. Em 1729 voltou para a França e publicou cinco anos depois suas Cartas Filosóficas, um elogio às instituições políticas inglesas. Lógico que a monarquia francesa não gostou e mais uma vez ele teve que sair de Paris, refugiando-se na província de Cirey com sua amante Marquesa de Charlet. Madame Pompadour, sua amiga e favorita do rei, conseguiu para François-Marie o cargo de historiador real, o título de fidalgo e um lugar na Academia, onde estavam os intelectuais consagrados do reino. Nesta fase escreve Contos Filosóficos, a partir de 1747, contando pequenas histórias em que trabalhava as fraquezas da sociedade da época (corrupção, Deus, etc.). Mais uma vez se desentenderia com a corte, o que se agravou com a morte da Marquesa de Chatelet. Mudou-se para a Prússia convidado por Frederico II, mas logo se desentenderia com o rei e iria para a Suíça em 1756, onde permaneceria muito tempo.

Indo à casa do cura de Confignon, este notou em Rousseau conflitos intensos em seu espírito. Remeteu-o com uma carta de recomendação à Senhora de Warrens, residente em Annecy, convertida recentemente ao catolicismo. Jean-Jacques tinha 16 anos e se impressionara com a beleza da mulher. O objetivo do cura era ganhar mais um converso, mas a Senhora de Warrens, não podendo incumbir-se pessoalmente da tarefa, enviou o rapaz para Turin. Em 1728 Rousseau converte-se ao catolicismo em uma cidade estranha e sem recursos financeiros. Termina por virar secretário da Senhora de Vercellis. Com a morte da patroa acusam-no de furto e o expulsam sem escutar explicações. Passa a trabalhar com o Conde de Gouvon, mas queria voltar para a Suíça e rever a Senhora de Warrens. Não sendo possível a convivência vai para um seminário em que passa quatro meses e após passa a dedicar-se a música. Termina “caçar” a Senhora em Paris envolvendo-se em diversas complicações para lá descobrir que a Senhora havia voltado para a Suíça. Resolve também voltar a pé, pois não tinha dinheiro, para ver sua protetora. Lá descobre que ela tem um novo amor.

Em Genebra Voltaire escreve o Ensaio sobre os costumes e o espírito dos povos, de 1756. É o primeiro tratado moderno de história onde ele traçou uma evolução da sociedade humana levando em consideração não só a Europa e o cristianismo, mas também a China, a Índia, o budismo e o islamismo (uma novidade tratar de tais religiões na época). Colaborou na Enciclopédia ou Dicionário raciocinado das artes e ofícios, e um verbete seu criticando o protestantismo o fez sair de Genebra, voltando para a França e se instalando em Ferney. Em 1759 publicou Cândido ou O otimismo, colocando as idéias de Laibniz, filósofo alemão, na figura do professor Pangloss. Em 1763 escreve o Tratado sobre a Tolerância, onde discutiu a questão dos dogmas religiosos. Passou a ser odiado pelos altos cargos da igreja, mas ovacionado e aclamado pelo povo, o clero esclarecido e pelos cortesãos iluministas.
Rousseau volta à Paris em 1741 para apresentar a Academia de Ciência seu trabalho musical. Rejeitam-no, mas ele faz seus primeiros contatos com a intelectualidade parisiense. A Senhora de Broglie arranja-lhe o cargo de secretário do embaixador da França em Veneza, com quem logo se desentende. No hotel que residia conheceu Thárèse Le Vasseur, que lá trabalhava e com quem se envolveu, dificultando seu sustento, pois era mulher com vasta família dela dependente. Deram-lhe de recortar um texto de Voltaire, musicado por Rameau, no qual Jean-Jacques não quis fazê-lo sem o consentimento do autor, que se fez seu amigo.
No ano de 1749 a Academia de Dijon instituiu um concurso temático de textos no qual Jean-Jacques ganhou com seu Discurso sobre as Ciências e as Artes. Estava lançado o pensador que sepultaria o músico e o pintor que havia dentro dele, porém que não o salvou de suas dificuldades econômicas. Em 1753 participou de outro concurso da mesma academia com a obra Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os homens. Para escrevê-la Rousseau isola-se no campo, longe de Paris. Neste ano volta a converter-se ao protestantismo, pois sua cidade o tinha em conta a não ser por se tratar de um suíço católico. Mas com a publicação do Discurso, Genebra o repudia, e o próprio Voltaire, vivendo na Suíça, condena-o em tons sarcásticos. Rousseau abandona a idéia de viver em Genebra e posteriormente publica Lettre sur la Providence, endereçado a Voltaire, e o esbôço da Nouvelle Héloise. Em 1758 redige Lettre à d’Alembert sur les Spetacles, em resposta a um artigo da Enciclopédia que criticava o desinteresse dos genebrinos em relação ao teatro.
Em 1762 o Contrato Social é editado em Amsterdã. No mês seguinte Emile é lançado em Amsterdã e em Paris simultaneamente. O livro é condenado a fogueira e o autor à prisão. Este refugia-se no interior da Suíça, mas ali chega a mesma sentença, levando Rousseau a refugiar-se em território Prússio. Porém Voltaire publica um panfleto que impossibilita a permanência do suíço neste território e Rousseau vaga por Estrasburgo, Londres, Normandia, Bourgoin (onde casa-se com Thérèse).

Velho e doente, Voltaire morreu em 1778 prestigiado como intelectual. Em 1790 seu corpo é levado ao panteão pela revolução francesa.

Rousseau morreu no castelo de um admirador seu, o Marquês de Girardin, no dia 2 de julho de 1778. Ninguém mais do que ele foi cultuado pelos revolucionários de 1789.

Só com a história de vida dos dois pensadores já é possível fazer suficiente relação. Notadamente Voltaire esteve sempre ligado aos grupos de poder enquanto que Rousseau estava sempre em conflito com eles. O francês era de família abastada e nada passou de dificuldades financeiras ao longo da vida enquanto que Jean-Jacques era de família humilde, não conheceu a mãe e foi abandonado, por dificuldades econômicas, pelo pai, tendo sido criado por uma tia, e jamais conheceu a riqueza ou passou por um período digno de menção em que folgasse dinheiro. François-Marie teve curso superior, o que o suíço jamais tivera. A amante do primeiro era uma marquesa; a do segundo uma copeira de hotel. Em comum os dois tiveram o eterno olhar desconfiado da igreja e o mesmo ano de morte, tendo ainda assim o pensador de Genebra vivido 16 anos a menos e passando longo tempo de sua vida em precário estado de saúde.
De Voltaire podemos dizer que possuía a alma mais quieta, estabelecendo-se quando possível em Paris, senão estando em um lugar que possa fixar-se. Quanto a Rousseau, o espírito lhe inquietava sempre que se encontrava muito tempo no mesmo lugar, arrumando sempre confusões com os nobre que lha davam abrigo. Essas diferenças marcantes os colocaram em confronto por diversas vezes, confronto este iniciado por Voltaire quando o genebrino escreveu o seu Discurso da desigualdade. Desde então um não parara de perseguir o outro, estando sempre Voltaire em posições mais favoráveis de confronto, pois era mais ligado ao poder que ambos combatiam, mas ninguém com tanta paixão e afinco como Rousseau.

Cândido ou otimismo

Publicado em 1759, Voltaire contrapunha sua visão pessimista do mundo à visão do filósofo alemão Leibniz, que acreditava que o homem vivia no melhor dos mundos possíveis. A narrativa gira em torna de Cândido, um jovem que é expulso do castelo onde cresceu e vê-se obrigado a enfrentar a vida sozinho. No mundo só conhece a infelicidade, a corrupção e a injustiça, mas o Dr. Pangloss sempre o convence a ficar feliz, pois as coisas sempre acontecem da melhor maneira.
O instituição mais combatida em todo o livro é sem dúvida a igreja, contra a qual Voltaire sempre combateu e pela qual foi muito perseguido, principalmente depois de seu Tratado sobre a tolerância. Mas em Cândido o primeiro grande confronto está na hora em que Pangloss e seu discípulo ajudam pessoas a escaparem dos escombros do terremoto em Portugal e ao dizer que as pessoas não devem chorar pois tudo ocorre da melhor maneira, um homem da inquisição o aborda e assim Pangloss foi enforcado com mais cinco pessoas em praça pública e muita festa da população. Por ser considerado discípulo, Cândido foi acoitado até desmaiar, duvidando pela primeira vez do otimismo de seu mestre.
Mas a primeira crítica a sociedade em todo o livro é ao estado de guerra. Cândido o descobre quando entra para o exército e logo descobre que a guerra chegou às terras do Barão, matando toda a família, inclusive Cunecundes, escapando apenas o Dr. Pangloss.
Agora, uma boa crítica à sociedade de hoje está na hora em que Cândido e Cacambo chegam à cidade de Eldorado. Ali o autor trabalha não só o homem mais próximo de seu estado natural como também idealiza a cidade ideal, que, no caso, não teria religião e os habitantes não se importariam com o dinheiro ou o ouro. Para chegarem na cidade pegaram uma condução que “os levou, sem perguntar o porquê ou que destino tomavam ou de onde tinham vindo”. Logo foram em uma estalagem em que comeram do melhor que ela tinha a oferecer, ao entregarem as pedras preciosas que encontraram na rua o estaleiro falou: “Bem vejo que os estrangeiros –disse se desculpando- nunca passaram por cá. Não reparem o meu sorriso, é que achei muito engraçado receber por pagamento essas pedrinhas da rua. Com certeza não possuem a moeda nacional. Mas também, pra que precisam?! As nossas hospedarias, tavernas e estalagens, pra comodidade pública, são pagas pelo governo.”
No que concerne à religião, quando Cândido perguntou ao sábio se por acaso não cultuavam algum deus, o sábio ficou chocado: “Como pode duvidar de tal coisa, meu amigo?! Por acaso há de pensar que somos um povo ingrato? É claro que temos Deus, adorado dia e noite por toda a população.” Quando Cacambo perguntou qual era a religião, o velho respondeu sem graça: Religião, só há uma! Não há duas nem três! Pois existe só um Deus! Francamente, me fazem cada pergunta!... Sobre rezar: não rezamos, meu senhor! –disse o homem muito sério- nada temos a pedir a Deus, nosso protetor, pois ele tudo nos dá. Dos cultos e dos sacerdotes: todos somos sacerdotes. A cada manhã do dia, nosso rei, em seu palácio, e os chefes de família, em suas casas modestas, entoam ações de graça. Todos os músicos, nas cidades e aldeias, tocam os seus instrumentos, acompanhando o evento. Assim ocorrendo pela noite. Das condenações e disputas religiosas, diz o sábio se espanta: Como condenar pessoas? De que disputas você fala? Infeliz será o povo que tem isso por costume! E não posso acreditar que seja assim na Europa! O que Voltaire mais critica aqui, é o contato do homem selvagem com o europeu, pois Eldorado foi a única cidade que resistiu aos ataques espanhóis por estar em um lugar inacessível, por isso mantém sua virtude. Os membros que saíram da cidade foram cruelmente assassinados pelos ibéricos.
Estando Cândido em Suriname, o livro faz uma crítica a outro povo massacrado pelos europeus, desta vez o escravo negro. Tendo sido roubado por um pirata holandês, vai a um juiz, situação a qual o autor aproveita para criticar a lentidão e burocracia do judiciário. Indo para Paris, um frade arma uma cilada para ficar com o dinheiro de nosso heróis, mas com dinheiro subornam o guarda que foi aprisionar Cândido, e é o frade quem acaba preso, em uma clara alusão à corrupção policial.
Em Veneza, Cândido ceou com seis reis no carnaval. Todos ali foram depostos de seu cargos e desta vez as referências do escritor se direcionaram ao sistema monárquico. Já no final do livro reencontram Cunecundes tão feia como pode ser uma mulher e ao pedi-la em casamento para o barãozinho este não cede por ser de casta superior, mesmo estando na mais miserável condição. Uma clara alusão a uma nobreza decadente européia, que quer manter as aparências mesmo quando todos vêem que não existe nem isso para sustentar. Uma nobreza que estava perdendo cada vez mais espaço para a burguesia, que vivia em um mundo dinâmico de ascensão e queda mas que se apegava ao que lhe restava: o sangue, a história.
Por fim o livro se mostra como uma grande exortação ao trabalho, pois a vida de miséria e de infelicidade que levavam todos só encontrou um sossego quando passaram a todos trabalharem. De certa forma o mestre Pangloss estava certo, pois todos os personagens iniciais do livro se reencontraram e passaram a viver juntos. Outros mais, como Martinho e o diácono, aumentaram a família. Pode-se dizer até que eles ficaram felizes para sempre.

Sobre as Ciências e as Artes

Só quem leu o Discurso Sobre as Ciências e as Artes sabe a coragem do autor em enviar para o concurso da Academia de Ciências de Dijon, para o concurso sobre o tema “Contribuiu o restabelecimento das ciências e das artes para o aperfeiçoamento dos costume?”. Ilude-se quem imagina encontrar sequer um elogio às ciências ou às Artes, pois ambas são massacradas pelo autor como responsáveis pela inércia e ignorância humanas. Aliás, é uma verdadeira apologia da ignorância. “A arte amolece o espírito e corrompe a sociedade. Mais vale conquistar o mundo do que ser um mundo de arte”, diz Rousseau (p. 213-14). Ressalta que as grandes civilizações caíram quando passaram a dedicar-se às artes e ciências (Egito, Grécia, Roma); crítica a filosofia, dizendo que ouvindo os filósofos os tomaríamos por um bando de charlatães (p.228). Fala mal nitidamente do próprio iluminismo: “Deus todo poderoso! Tu que tens nas mãos os espíritos, livra-nos das luzes e das artes funestas de nossos pais, e dai-nos a ignorância, a inocência e a pobreza” (p. 229). Desacredita os mestres dizendo que os grandes gênios destes não precisaram, e que o ensinamento de um iria apenas limitar um bom pensador (p. 229). Por fim, por esses trechos é possível visualizar como confrontou aqueles que o deram o primeiro prêmio e exorta a virtude como única arte e ciência que o homem deve seguir.

Sobre a Desigualdade

Este foi um tema bem discutido ao longo da disciplina, assim darei algumas pinceladas. Quando apresentei o trabalho sobre o Discurso sobre as Origens e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, pensei que seria fácil expor em sala de aula as idéias de Rousseau, afinal, a desigualdade não é algo difícil de explicar, ainda mais lendo um autor tão apaixonante. Porém foi como explicar a simples frase “penso logo existo” de Descartes. Óbvia de início, mas de difícil explanação.
Rousseau trabalha o homem de natureza e fundamenta a origem da desigualdade com o advento da propriedade privada. A partir do momento que passa a viver em sociedade, desvincula-se da natureza e passa a perverter-se. Essa perversão é a busca de sua virtude original que nunca mais encontrará e a qual sempre procurará substituir, indo sempre ao caminho da desgraça. Jean-Jacques trata a linguagem e o trabalho como a queda do mundo perfeito e a ascensão para a alienação. A propriedade privada e por conseguinte a sociedade é que marcam o estado de guerra. Nessa construção do homem social, as catástrofes naturais é que teriam unido o homem e este organizado-se familiarmente, aos poucos deixando a natureza para constituir uma comunidade aos moldes familiar. Assim surgiria o trabalho como cooperação comunitária e junto a língua como advento da consciência da alteridade entre os próprios homens (MATOS, O., p12). Essas duas propriedades alteram a maneira de ser dos homens e tiram o homem do “amor por si” lavando-o ao “amor-próprio”. Logo viriam a questão do “meu” e assim a propriedade, o trabalho alienado, a submissão. Passou-se da força para o poder. O homem separado da natureza aliena-se por que passa a depender de produtos esternos produzidos por ele para sobreviver, acreditando que depende deles e não do trabalho que os produz. O ser humano caiu do paraíso para o qual nunca mais voltará. Caiu em desgraça e para a desgraça continuará. Um pouco negativo, ele, não?



O contrato social

Tentarei ser breve e claro para explicar o que é o contrato social. Imaginemos o homem nos seus primeiros tempos, em que ele era livre. Como dito antes, catástrofes naturais os uniriam e eles se organizariam em famílias, que mais tarde daria origem à sociedade. Entre os homens livres existe o conceito do “eu”, a individualidade, mas o ser humano abre mão do “eu” pelo “meu” quando passa a viver em sociedade, pois esta surge com a propriedade privada. Neste estado o homem já não tem total liberdade e para cada um defender o “seu” surge o Contrato Social, em que a vontade individual dá lugar à vontade universal, a força lugar ao poder e a sociedade ao estado de guerra, pois a vontade de ampliar o “meu” faz com que homens ambiciosos entrem em conflito entre si por mais propriedade. Este contrato social mais tarde é regido por leis, que a princípio é a vontade de todos nas mão de todos e em que os que criam as leis devem estar igualmente a elas submetidas.
Para Rousseau existem quatro tipos de leis no seio social: políticas, para reger os homens; civil, para regular a liberdade entre os homens, deixando-os livres entre si mas dependentes do Estado; leis criminais, para aqueles que desobedecem as leis e as normas culturais, a mais importante de todas elas. O Estado, por sua vez, seria formado pelo soberano, que executaria as leis; o governo, que ficaria entre o soberano e os vassalos garantindo os direitos e impedindo abusos através das leis; e logo viriam os vassalos, ou o povo.
O Contrato Social lembra em muitos aspectos a obra O Príncipe de Maquiavel, mas exalta à república. Durante a obra trata-se de todas as formas de governo teorizadas por Aristóteles, acrescentando dados a mais. Diz que a democracia só seria possível em um povo de deuses, pois é muito perfeita para os homens, e, como dito, ressalta a república como único sistema virtuoso para os homens.
Rousseau acreditava que os grandes Estados tinham pouco ou nada de solução, mas chegou a elaborar constituições para pequenos Estados, como a Polônia. A política era um de seus temas favoritos.


Considerações

A obra de Rousseau é como o seu espírito: inquieta. Não podemos dizer que existe uma forte coerência em sua obra, pois não é de toda amarrada, mas sem dúvida apaixona, como ele se mostra apaixonado pelo que faz. Atinge a todos, mesmo quando tenta elogiar, como no caso do Discurso sobre a Desigualdade em que começa elogiando Genebra, que vê, dentro daquele Discurso, uma ofensa. Não precisava de uma razão para desentender-se com as pessoas, sua própria razão contestadora o colocava em cheque quando se encontrava em presença de algum poderoso. Sua obra é direta e ofensiva. Emílio, um romance que ofendeu tanto quanto suas teses, é um exemplo que com a mesma linguagem, Rousseau agredia mais que Voltaire com Cândido.
Voltaire já era um homem de razão forte, menos apaixonado e mais lógico. Quando defendeu, como advogado, cristãos acusados e condenados por heresia, escreveu o Tratado sobre a Tolerância. Ele, sim, precisava de um motivo no que escrevia e era mais polido contra o poder, afinal, podemos dizer que nunca esteve fora dele, assim como sua família. Tinha contato direto com reis, condes, marqueses e ou conhecia a fundo suas dificuldades ou aprendeu ainda cedo que a Bastilha é um mal lugar para se viver. Seja como for, as teses de Rousseau ofenderam também a Voltaire, que quando pode, combateu duramente o suíço.
Mas também não tinham ambos pontos em comum? Sim e no pouco que colocamos fica perceptível, porém o que diferenciava mesmo era na maneira com que expunham seus pensamentos. Ambos foram levados para o Panteão de Paris, tendo morrido longe se seus locais de nascimento, pois em Paris não dariam sepultura cristã a Voltaire, e em Genebra Rousseau estava por demais mal visto. Ambos foram tidos como heróis pela Revolução Francesa, embora, justiça seja feita, Rousseau tenha sido o grande ídolo dos jacobinos, que lamentaram ele não estar vivo para presenciar a revolução. Um revolucionário, era Rousseau, e isto Voltaire nunca se propôs a ser.
Dentro dessa proposta revolucionária Rousseau certamente sobreviveu mais que Voltaire, o que é visível se notarmos os estudos posteriores feitos sobre um e outro. É o que mostra Olgária C. F. Matos e o que apresentou F. Engels na sua obra Anti-Düring. Podemos notar em Marx uma evolução racional e materialista de Jean-Jacques ou antes em Hegel. Enfim, todos os teóricos que propuseram mudanças pós-Rousseau, utilizaram-se, de uma maneira ou de outra, do legado rousseauriano. Sua obra, combatida em seu tempo, sobreviveu a ele, seus contemporâneos e está viva até os dias de hoje, ao pelo menos enquanto houver governos e desigualdades.
Mas afinal, que cobra de duas cabeças é essa? É a melhor maneira de representar o iluminismo através de seus dois principais pensadores, e se estão as cabeças em lados opostos é porque se manifestavam de maneiras divergentes: uma (Voltaire) o raciocínio lógico e a outra (Jean-Jacques) o raciocínio apaixonado

Bibliografia

• PADOVANI, U. & CASTAGNOLA, L. História da filosofia. 12 ed. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1978.
• REALE, G. & ANTISERI, D., História da filosofia. 3vol. V.2. São Paulo: Ed. Paulinas, 1990 (coleção filosofia)
• ROUSSEAU, J.J. O Contrato Social e outros escritos. São Paulo: Cultrix,
• MATOS, O. Rousseau uma arqueologia da desigualdade. São Paulo: Ed. MG, 1978
• VOLTAIRE. Cândido ou o otimismo. São Paulo: Scipione