domingo, 14 de junho de 2009

COR & DOR: O TRÁFICO NEGREIRO NO ATLÂNTICO


INTRODUÇÃO



Meses havia, portanto, em que 1500 indivíduos deixavam para sempre sua aldeis, sua terra, empurrados para dentro dos tumbeiros. Outros tantos indivíduos aguardavam encurralados nas cercanias das cidades, sendo escolhidos, alimentados e, muitas vezes, sepultados ali mesmo. Cançaso físico, mau tratamento no percurso terrestre, subnutrição e as doenças do porto luandense ceifavam boa parte dos escravos forasteiros, arrancados do platô ovibundo e de mais longe.
[Alencastro]

O objetivo deste trabalho é analisar alguns pontos do tráfico negreiro realizado através do oceano Atlântico entre a África e a América. Basicamente será debatido a situação do negro depois de aprisionado e pronto para partir rumo a América ibérica, entendendo que o processo para as colônias francesas, holandesas ou inglesas é semelhante e em grande parte saído dos mesmos portos africanos e traficado pelos mesmos grupos.
Aqui será dado uma ênfase no caso português, ou seja, os escravos que são aprisionados por ou para lusitanos e que se direcionam para os portos brasileiros, dando uma ênfase um pouco maior para o porto de Luanda, em Angola, de onde partiram a maioria dos escravos que chegaram ao Brasil, em especial ao Rio de janeiro, e que ganhou enorme importância a partir do século XVII.
Entretanto não relatarei como ocorreram as apreensões dos escravos na África e nem entrarei em detalhes maiores sobre as políticas internas africanas, a entender, a guerra entre os próprios africanos para conseguirem escravos e venderem aos europeus.
As guerras entre os países da Europa pelos portos de aprisionamento e exportação de negros escravos, como entre Portugal e Holanda, serão deixadas de lado exatamente por priorizar apenas os dois momentos extremos na vida do negro: quando é aprisionado e sai da África e quando chega na América, em especial no Brasil.
O trato dos viventes, de Luiz Felipe de Alencastro é a obra motora deste trabalho, o que quer dizer que sigo a estrutura deste autor para debater com os demais aqui apresentados ao longo destas poucas páginas em que pouco poderá ser aprofundado, mas uma bibliografia mínima será levantada.
Manolo Florentino também será citado como uma das fontes mais importantes. Em primeiro lugar por acompanhar a visão de Alencastro em alguns aspectos, como a importância de Angola para o tráfico, em segundo lugar por trazer novas questões no que diz respeito a tráfico. Entretanto como é muito preso ao Rio de Janeiro, foram utilizados poucos trechos de sua obra Em Costas Negras.

CICLO FECHADO

Para levar a cabo viagens regulares entre a Metrópole e a conquista americana, devia-se observar um calendário marítimo preciso, uma “janela” sazonal delimitada. Largava-se de Lisboa entre os dias 15 e 25 de outubro para lançar âncora em Recife cerca de dois meses mais tarde. Na volta carecia levantar velas em Pernambuco, ou na Bahia, até o fim de abril para chegar em Lisboa no mês de julho. Tais costumavam ser os parâmetros ideais para essa viagem. Fora desses prazos, o tempo de cada uma das etapas da viagem dobrava –no mínimo –,com o aumento exponencial do risco da tripulação, expostas às tempestade sazonais, à sede e às doenças nas calmarias ao largo da zona equatorial africana.
[Alencastro]

Após livrar-se dos mouros e depois de uma memorável guerra contra a Espanha, Portugal ganha sua autonomia e parte para uma monarquia absolutista em que muitos dos próprios fidalgos portugueses se tornaram os comerciantes. Já no século XV a burguesia comercial manifestou uma grande força, enquanto a nobreza demonstrou ter menos aversão ao trato com negros que na maioria dos outros países europeus. Por outro lado, o capital comercial não chegou a revolucionar o modo de produçào que continuou sendo basicamente senhorial, portanto atrasado e incapaz de saltar até uma ordem social capitalista (1) .
Os nobres receberam grandes extensões de terra, para as quais tiveram que recrutar trabalho escravo africano. Os primeiros escravos chegaram em 1441. Três anos mais tarde várias centenas foram trazidos para o serviço doméstico, e pouco tempo depois milhares trabalhavam em grandes quantidades nas fazendas da nobreza.
Explorando o caráter cosmopolita, aterritorial, do capital comercial acumulado nas praças européias, Portugal lança precocemente as bases imperial de mercado. Mas a Coroa não dispõe de meios nem da necessária força para conservar esse espaço transcontinental (2) e os negros serão uma das armas e das opções que os portugueses encontrarão para solucionar o problema de falta de material humana para habitar os territórios descobertos e por descobrir.
Entretanto como vamos nos referia ao tráfico do Atlântico, vale apenas ressaltar que as potências melhor equipadas para o comércio ultramarino fizeram com que os lusitanos perdessem mercados e territórios principalmente no oriente, tirando algumas lições e voltando-se para o Atlântico, implantando ali um sistema de produção econômico mais eficaz que na Ásia.
O comércio de escravos se apresenta como uma fonte de receita para o Tesouro, no qual os ganhos fiscais sobrepõem os ganhos econômicos, e Portugal, que chega na África em busca de jazidas de metais preciosos, se integra em um sistema de rede em que tenta saldar suas trocas de arremessas de ouro, prata, cobre, dos quais as terras portuguesas eram muito pouco providas (3) .
Após os primeiros contatos Portugal logo desenvolve o trato de negros já no século XV, que se apresenta como uma fonte de receita para a Coroa, como vimos, e ainda responde à demanda escravista de outras regiões européias. Os africanos surgem, então, como vetor produtivo da agricultura das ilhas atlânticas e consolidam a produção ultramarina portuguesa.
Mas é o monopólio do tráfico negreiro que garantirá, ao menos em um primeiro momento, determinadas vantagens para a Corte de Portugal. Primeiro porque o controle do trato negreiro lhe dá o comando da reprodução do sistema escravista. Segundo, como já dissemos, a administração régia encontra novas fontes de receita. Em terceiro lugar, e de muita importância, o confronto entre administração régia, moradores e jesuítas é provisoriamente contornado; a evangelização é facilitada e os índios são menos apreendidos.
Em quarto lugar, “os negociantes combinarão as vantagens próprias de uma posição de oligopsônio (na compra do açúcar) com as vantagens inerentes a uma situação de oligopólio (na venda de escravos) (4) ”. Podemos analisar também que o comércio externo da colônia é dinamizado macro e microeconomicamente. E, por fim, a longo prazo, os recursos ao crédito e a compra antecipada de africanos favorece aos moradores da colônia.
Trabalhando melhor alguns deste seis pontos temos que, em primeiro lugar, as colônias portuguesas não concorriam e sim se complementavam, como cita Manolo Florentino resumindo as idéias de Alencastro:

Os traficantes europeus demandavam escravos –e, algumas vezes, alimentos –, podendo em troca oferecer instrumentos de guerra e outras mercadorias. Por sua vez, os grupos dominantes africanos viam no tráfico um instrumento por meio do qual podiam fortalecer seu poder, incorporando povos tributários e escravos. A venda destes últimos no litoral lhes permitia o acesso a diversos tipos de mercadorias e material bélico. Desse modo, aumentava a sua capacidade de produzir escravos e, por conseguinte, de controlar os bens envolvidos no escambo. Estava criado um circuito fechado em si mesmo, cuja velocidade de rotação dependia das oscilações da demanda americana (5) .

Quanto ao lucro que a administração régia ganha na receita, basta citar o exemplo de que o cativo que entrava no Brasil recebia 20% de tributo sobre seu preço, enquanto que na América espanhola o tributo era de 66%. Na dita dinamização da economia no sentido macro e micro, estamos falando de uma relação semelhante à do circuito fechado: o comércio atlântico amplia a demanda das zonas agrícolas (macro) e os lucros dos engenhos fazem com que os senhores comprem mais escravos para produzirem cada vez mais.

POR QUE O NEGRO?

Tornado subumano pela escravatura, o nativo imaginava que única forma de salvaguardar sua liberdade sonsistia em abdicar do pertencimento à humanidade.
[Alencastro]



Dentro deste ciclo ocorre uma relação de dependência na qual fica difícil saber qual o lado mais importante neste jogo comercial: se a metrópole monopolizadora e administradora; se a África fornecedora de escravos; ou se o Brasil (e, por conseguinte, a América) de onde vem a demanda. Sabe-se que a nobreza brasileira progressivamente se tornava e se fazia mais dependente dos negros africanos. As razões são muitas. Vejamos algumas.
Em princípio a oferta de escravos africanos se torna mais regular e flexível que a de índios. “Os efeitos seletivos”, também, “das circunstâncias envolvendo a captura, as grandes marchas até o litoral e as vendas sucessivas de que o escravo é objeto antes de ser embarcado” (6) . Muitos africanos eram (parcialmente) imunizados às doenças predominantes dos europeus e, em contrapartida, as enfermidades trazidas pelos negros aumentou a mortalidade dos índios livres e cativos, elevando a demanda de africanos.
Para Florentino havia mais uma explicação: a de que os escravos eram mercadorias socialmente baratas. Segundo ele, “quase todos os homens livres inventariados eram proprietários de pelo menos um escravo (7) ” mesmo nas épocas de preços altíssimos dos africanos. “Ora, se este padrão conseguiu manter-se mesmo levando em consideração os custos do apresamento, transporte e a remuneração dos traficantes, então é óbvio que residia na África o segredo da extensão social da propriedade escrava no Rio de Janeiro (8) .”
Entre 1790 e 1835 o Rio de Janeiro concentrava cada vez mais escravos, mesmo os preços internacionais do açúcar em franca queda, caindo 14% entre 1799 e 1807, e 11% de 1813 até 1819. Ainda assim as exportações do açúcar cresceram, devido ao número maior de engenhos no Brasil. Com isto, podemos concluir “que a oferta de homens deveria atender não a uma demanda episódica, mas sim a uma procura que se prolongou e aumentou no tempo. A oferta africana tinha, pois, de ser uma oferta elástica e barata de homens (9) ”.
Genovese discute em seu livro Esclavitud y Capitalismo, as idéias de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior sobre a ostentação e a luxúria dos luso-brasileiros, ou melhor dizendo, sobre o comportamento dos portugueses da América diante do escravo e do trabalho manual.

Para Gilberto Freyre, los portugueses que se asentaron en Brasil llevaron consigo ‘el gusto por la ostentación y la grandeza y el desprecio por el trabajo manual, que se explican, en grande parte, porque en su propria patria y durante casi un siglo, la mayor parte de la fuerza de trabajo la constituyeron negros esclavos, y porque anteriormente, durante muchos siglos, los cultivos más difíciles habían corrido a cargo de los moros (10) .

Genovese continua afirmando que em Caio Prado Júnior o patriarcalismo não vem de Portugal, mas é fruto do próprio contexto histórico local, caracterizado pelo sistema de plantation com força de trabalho escrava.
Ainda com respeito ao comportamento do “brasileiro” e de sua relação com o escravo, Alencastro aponta o escravo como um objeto de luxo e que mesmo isto contribui para o aumento da demanda de africanos, já que nesse comportamento ostentatório, é medido a riqueza pelo número de empregados domésticos negros (11) .

Notas:

1- GENOVESE, E. esclavitud y capitalismo, Barcelona: Ariel, 1971, p. 118.
2- ALENCASTRO, L. F. o trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 30.
3- Id. ibid. p.30
4- id. ibid. p.37
5- FLORENTINO, M. em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, São Paulo:Companhia das Letras, 2002, p. 87. Mais detalhes em ALENCASTRO,op.cit.p. 35
6- ALENCASTRO, L. F. o trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 39.
7- FLORENTINO, M. op. cit. p. 75.
8- Id. ibid. p.76
9- id. ibid. p.78
10- GENOVESE, E. esclavitud y capitalismo, Barcelona: Ariel, 1971, p. 125.
11- ALENCASTRO, L. F. o trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 38.

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