sábado, 13 de junho de 2009

Psicanálise, inconsciente e a Escola de Frankfurt na reorganização das ciências humanas

“NO PRINCÍPIO ERA O CAOS”: ou o positivismo
Escrito em 2003

A psicologia de século XIX herdou da Aufklärung a preocupação de alinhar-se com as ciências da natureza e de encontrar no homem o prolongamento das leis que regem os fenômenos naturais. Determinação de relações quantitativas, elaboração de leis que se apresentam como funções matemáticas, colocação de hipóteses explicativas, esforços através dos quais a psicologia tenta aplicar, não sem sacrifício, uma metodologia que os lógicos acreditaram descobrir na gênese e no desenvolvimento das ciências naturais. Toda a história da psicologia até meados do século XX é a história paradoxal das contradições entre esse projeto e esses postulados; ao perseguir o ideal de rigor e de exatidão das ciências da natureza, ela foi levada a renunciar aos seus postulados. Mas o projeto de rigorosa exatidão que a levou, pouco a pouco, a abandonar seus postulados tornou-se vazio de sentido quando esses postulados mesmos desapareceram, pois a idéia de uma precisão objetiva, quase matemática no domínio das ciências humanas não é mais conveniente se o próprio homem não é mais da ordem da natureza (FOUCAULT, M. problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 122).
A psicologia, portanto, precisou de novos princípios e de novos projetos. Mas a renovação do método implicava a emergência de novos temas de análise, o que fará com que a renovação radical da psicologia ainda seja uma tarefa incompleta até os dias de hoje, embora possamos dizer que nos últimos cem anos houve avanços, inclusive instaurando novas relações com a prática, através da educação, da medicina mental e da organização de grupos, por exemplo. Essa busca pela prática, na psicologia do século XIX, foi uma tentativa de aproximar a psicologia das ciências naturais pelo empirismo, mas as contradições levaram a psicologia contemporânea a serem, em sua origem, uma análise do anormal, do patológico, do conflituoso, uma reflexão sobre as contradições do homem consigo mesmo. E se ela se transformou em uma psicologia do normal, do adaptativo, do organizado é como que por um esforço para dominar essas contradições (FOUCAULT, M. op. cit. p. 123-4).
Sob sua diversidade, as psicologias do final do século XIX possuem esse traço comum, de tomar emprestado das ciências da natureza seu estilo de objetividade e de buscar também seu esquema de análise, surgindo assim uma psicologia no modelo físico-químico, no modelo orgânico e no modelo evolucionista.
Mas no final do século XIX fez-se a descoberta do sentido (FOUCAULT, M. op. cit. p. 127) por caminhos bem diversos, porém que foram naturalmente incorporados à paisagem da psicologia. Apenas deixou-se de lado hipóteses demasiado amplas e gerais pelas quais se explica o homem, para um exame mais rigoroso da realidade humana, ou seja,

Mais de acordo com sua medida [do homem], mais fiel às suas características específicas, mais apropriado a tudo o que, no homem, escapa às determinações de natureza. Tomar o homem, não no nível desse denominador comum que o assimila a todo ser vivente, mas no seu próprio nível, nas condutas nas quais se exprime, na consciência em que se reconhece, na história pessoal através da qual se constitui. (FOUCAULT, M. op. cit. p. 127).

Com o surgimento dos sentidos as significações na conduta humanas se fazem igualmente a partir da análise histórica, pois toda a experiência vivida passa a pesar sobre a análise do homem. Mas nenhuma forma de psicologia deu mais importância à significação do que a psicanálise. Mesmo permanecendo ligada às origens naturalistas no pensamento de Freud e aos preceitos metafísicos e morais característicos do século em que o médico austríaco viveu.

OS PRIMEIROS PASSOS DE FREUD

Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico vienense que alterou radicalmente o modo de pensar a vida psíquica (BOCK, A. M., FURTADO, O. e TEIXEIRA, M. L. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 70). Sua contribuição é comparável à de Karl Marx na compreensão dos processos históricos e sociais (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, op. cit. p. 71. Outras referências comparativas entre Marx e Freud aparecem no demais autores citados durante este trabalho, com exceção de Foucault. Em função disso será trabalhado o primeiro e talvez principal foco do freudo-marxismo, que foi a escola de Frankfurt). Freud ousou colocar os “processos misteriosos” do psiquismo, ou seja, suas fantasias, os sonhos, os esquecimentos, a interioridade do homem como problemas científicos, criando assim a psicanálise.
O termo psicanálise é, portanto, usado para se referir a uma teoria, a um método de investigação e a uma prática profissional. Como teoria refere-se a um conjunto de conhecimentos sistematizados sobre os fundamentos da psique. Como método de investigação busca a interpretação de significados ocultos através de ações e palavras e produções imaginárias, como os sonhos, os delírios, as associações livres, os atos falhos. No tocante à prática profissional diz respeito à forma de tratamento, ou seja, análise visando o autoconhecimento ou a autocura, que é conseqüência do próprio autoconhecimento.
Para entender a psicanálise em seu desenvolvimento é preciso recorrer à própria vida do austríaco Freud. Suas obras são fruto de suas experiências pessoais com seus pacientes, transcritas com rigor em obras como A interpretação dos sonhos e Psicopatologia da vida cotidiana. A experiência inaugural de Freud para “descobrir” as regiões obscuras da vida psíquica forma a própria história do surgimento da psicanálise.
Freud formou-se em medicina na universidade de Viena em 1881 e especializou-se em psiquiatria. Trabalhou em um laboratório de fisiologia e deu aulas de neuropatologia no instituto em que trabalhava. Após muito clinicar, obteve uma bolsa de estudos em Paris, onde trabalhou com Jean Charcot, psiquiatra que tratava as histéricas com hipnose. Voltou então a Viena e fez da hipnose seu principal instrumento de trabalho.
Para adiantamento de seus estudos, teve contato com Joseph Breuer, que curava sintomas com hipnose em um método que Breuer chamava de catártico, por necessitar a liberação de afetos e emoções. Era um método ligado a acontecimentos traumáticos que não puderam ser expressos na ocasião da vivência desagradável ou dolorosa do paciente.
Trabalhando com mulheres histéricas como pacientes, Freud desconfiou que os sintomas fossem manifestações de recordações incômodas trancadas no inconsciente – recordações, pensou a princípio, de abusos sexuais sofridos na infância. Sua Teoria da Sedução, embora tenha sido modificada por ele mais tarde para reconhecer fantasias incestuosas além dos abusos reais, foi um dos primeiros exemplos de sua convicção de que as sementes das neuroses adultas são semeadas no desenvolvimento psicossexual infantil. Surge assim a chamada descoberta do inconsciente, nosso próximo tópico.




A DESCOBERTA DO INCONSCIENTE e sua importância para as ciências humanas

O inconsciente é uma região hipotética da mente, à parte das funções mentais que não são autônomas nem conscientes; na teoria psicanalítica, que nos interessa, é o repositório das recordações e dos impulsos reprimidos. O objetivo da grande parte da psicoterapia é descobrir e exorcizar os traumas reprimidos que prejudicam o comportamento e o temperamento. Embora se tenha ouvido falar de inconsciente antes de Freud (Nas teorias platônicas de reminiscência já se falava que a mente continha mais que imaginávamos e a idéia moderna de inconsciente provém do idealista alemão Friedrich Wilhelm Schelling), foi com o médico vienense que o termo inconsciente ganhou sua definição mais duradoura, tendo sido Freud também quem mais se dedicou e teorizou o assunto, transformando o inconsciente na peça fundamental de sua obra (ROHMANN, C. O livro das idéias: pensadores, teorias e conceitos que formam nossa visão de mundo, Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 214-5).
A consciência é tida como racional, sistemática, analítica, a procura de significados. Uma parte da mente que funciona como processador de dados. Por outro lado o inconsciente é tido como ilógico, ignorante de espaço e tempo, indiferente a contradições e ambigüidades.

O inconsciente é a morada das recordações, dos desejos, dos medos e dos pensamentos que a nossa mente consciente bloqueou –reprimiu –por serem chocantes, dolorosos ou socialmente inaceitáveis demais para serem revelados. Não obstante, os presidiários dessa penitenciária mental se fazem conhecer por meio de pequenas brechas e grandes erupções do nosso equilíbrio interno e do nosso comportamento externo. A expressão do material inconsciente varia de sonhos, nos quais ele é revelado simbolicamente, a surtos neuróticos nos quais se manifesta em afecções psicológicas ou físicas (ROHMANN, op. cit. p.215).

Para Foucault, em torno de Freud e da descoberta do inconsciente que todas as demais ciências humanas se reorganizaram e a própria psicologia perdia sua definição positivista herdada do século XVIII, ou seja, a psicologia deixava de ser a ciência da consciência e do indivíduo para tornar-se uma ciência humana.

De fato, percebeu-se rapidamente que descobrindo o inconsciente se drenava, ao mesmo tempo, uma quantidade de problemas que não concerniam mais, exatamente, seja ao indivíduo, seja à alma oposta ao corpo, mas que se remetia ao interior da problemática propriamente psicológica o que, até o momento, estava excluída dela, seja a título da fisiologia [...] seja a título da sociologia [...] O que faz com que a simples descoberta do inconsciente não seja uma adição de domínio, não seja uma extensão da psicologia, é realmente confisco, pela psicologia, da maioria dos domínios que cobriam as ciências humanas, de tal forma que se pode dizer que, a partir de Freud, todas as ciências humanas se tornaram, de um modo ou de outro, ciências da psiché (FOUCAULT, M. op. cit. p. 203).

Para Foucault o inconsciente é literalmente descoberto por Freud, que “o percebeu como um certo número de mecanismos que existiam ao mesmo tempo no homem em geral, e em tal homem em particular”. Por outro lado para Freud, ainda segundo Foucault, o inconsciente tem uma estrutura de linguagem, mas que para entender essa estrutura não tem que ser um gramático ou semiólogo, e sim um exegeta, que analise livremente como hermeneuta.
Em verdade é o próprio paciente quem deve descobrir o significado dentro da estrutura de linguagem do inconsciente. Freud reconhece haver uma mensagem no inconsciente mas não sabe o que quer dizer essa mensagem. Isto porque “é preciso que o inconsciente seja portador não apenas do que ele diz, mas da chave do que ele diz (FOUCAULT, M. op. cit. p. 204)”. É preciso, portanto, tratar a linguagem caótica da loucura como uma mensagem que teria nela própria a sua chave. Entretanto não há hermenêutica absoluta, pois não se pode jamais ter certeza de se obter o texto último.

FREUDO-MARXISMO: psicanálise e escola de Frankfurt

A psicanálise intervém na Teoria Crítica como um instrumento, que em determinado momento ela tem de usar. Isso significa igualmente que a psicanálise é inserida numa teoria do social, cuja base e cuja metodologia lhe são estranhas –respectivamente a inspiração marxista e a sociologia crítica –o que não passa sem aporias entre o “indivíduo” e o “social” (ASSOUN, P.L. A escola de Frankfurt, São Paulo: Ática, 1987, p. 74).
Como havíamos dito antes, Freud está para o estudo histórico do indivíduo como Marx está para a história do social. E o casamento perfeito desta colocação é a Escola de Frankfurt que, com Freud ainda vivo, foi pioneira em associar a sociologia e a psicanálise.

A obra de Marx está também muito comprometida com uma nova visão do homem, cuja sorte não está associada somente ao exercício da razão, apesar da visão racionalista de Marx em relação ao curso da história. O homem na obra de Marx aparece em uma situação social que o aliena em sua condição de produtor, rompendo a imagem de que o esforço pessoal leva a um desenvolvimento individual crescente. Marx nos mostra forças sociais ocultas que vão contra o crescimento humano, enquanto Freud nos apresenta estas forças ocultas num indivíduo incapaz de controlá-las e organizá-las por meio da razão (REY, F. G. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural, São Paulo: Thompson, 2003).

Lembremos que o movimento psicanalítico se desenvolveu ao mesmo tempo em que a escola de Frankfurt, de modo que seus caminhos tinham necessariamente que se cruzar. Um elemento concreto dessa relação direta é a criação do instituto psicanalítico de Frankfurt, inaugurado em 16 de fevereiro de 1929 e que foi integrado na Universidade de Frankfurt apadrinhado por Horkheimer a ponto de Freud ter escrito a Horkheimer para lhe agradecer (ASSOUN, P.L. op. cit. p. 75). O próprio Horkheimer começou uma psicanálise com Karl Landauer, o fundador do instituto em questão, que formava a seção local do Grupo de Estudos Psicanalíticos do sudoeste da Alemanha. Hans Sachs, Siegfried Bernfeld, Paul Federn e mesmo Anna Freud vieram aí fazer conferências públicas. Erich Fromm foi um dos primeiros membros.
A idéia de incorporar a psicanálise na escola alemã foi o libertar de um espaço crítico do social a partir de uma espécie de reforma crítica do entendimento imposta pelo idealismo alemão. A psicanálise vai intervir no caminho para fornecer um decifrar apropriado dos mecanismos da consciência social, “verificando-se ser necessária a lógica do fantasma para interrogar as mediações da consciência histórica e fornecer-lhes uma fixação concreta” (ASSOUN, P.L. op. cit. p. 75).
Seria assim fatal que a sociologia crítica, segundo Assoun, recorresse à psicanálise para explorar o lado inconsciente do processo social, mais precisamente quanto ao aspecto familiar do processo de constituição de uma personalidade autoritária. Erich Fromm foi quem primeiro sistematizou essa aproximação. Sobre o livro A psicanálise e a política, de Fromm, comenta Assoun:

A análise marxista encontrava na psicanálise um instrumento para decifrar a famosa cadeia da superestrutura à infraestrutura, o que supõe uma articulação significativa da estrutura libidinal e da estrutura social. Raramente a ambição duma psicologia social analítica terá sido expressa mais diretamente [...] A recaída mais palpável é o retrato sociolibidinal do pequeno-burguês, articulando o amor da posse, o puritanismo e a paixão da ordem, segundo uma constelação tipicamente ‘anal’ (ASSOUN, P.L. op. cit. p. 76).
Fromm terá pelo menos deixado a sua marca na aproximação da autoridade, ao combinar a atitude de um ideal progressista eudemonista com o tomar em linha de conta um desvio irracional da personalidade.
E foi exatamente em função de se revoltarem contra as conseqüências do pensamento de Fromm que os representantes da Teoria Crítica conseguiram definir uma outra aproximação da psicanálise, embora recusando absolutizar o freudismo e enraizando-o na sua situação histórica, Horkheimer e Adorno, nos anos de 1940, começam a reagir contra o revisionismo neofreudiano à maneira de Fromm.
A importância da categoria de libido e mesmo um certo uso da noção de impulso de morte encontram-se aí legitimados, assim como o papel que constituem as experiências infantis. Contra a correção culturalista que acusa a psicanálise de “instintivismo”, reafirmava-se no fundo o caráter espontaneamente crítico dos aspectos do freudismo referentes à teoria do desejo. Por um paradoxo revelador da própria evolução da Teoria Crítica em direção a uma filosofia da subjetividade, os fundadores chegavam a uma profissão de fé freudiana, cujo caráter tardio e conjuntural não é disso menos revelador (ASSOUN, P.L. op. cit. p. 77). Assim se ilumina a viragem antropológica, fazendo de uma certa forma de pessimismo relativo à dialética um novo agente de esperança, obrigando a redescobrir Freud, aliado da Teoria Crítica, para além do uso psicossocial da psicanálise. Com o tempo a psicanálise deixa de aparecer como uma filosofia irracional e passa a encontrar-se no processo social como sugeria Adorno desde 1927.
Com Herbert Marcuse e sua obra Heros e Civilização, aparece um paradoxo em função de Marcuse ser o frankfurtiano que manifestava frieza para com o freudismo até então (1955). Essa obra fez de Freud parte atuante de um pensamento social da modernidade social. Trata-se ainda de reagir contra o revisionismo neofreudiano mostrando a fecundidade social dos conceitos reputados de mais instintivistas, nomeadamente o impulso de morte. Marcuse reconcilia o pólo inconsciente e o pólo histórico no seio de uma emancipação coletiva e é pela psicanálise que a crítica afirma mais audaciosamente a sua ambição utópica, como se a problemática do recalcamento viesse ilustrar a da repressão (ASSOUN, P.L. op. cit. p. 78).
Com Habermas a psicanálise será abordada principalmente sobre o ângulo epistemológico. Graças a sua posição a psicanálise está situada em um momento decisivo da desconstrução epistemológica. A psicanálise se transforma, efetivamente, em aliada da reflexão crítica por ser da ordem da autoreflexão, chegando, o próprio inconsciente, a ser relacionado com uma patologia da comunicação, referindo-se a um sujeito falante, mas não isenta da lógica da comunicação sob a qual se fundamenta Habermas. Com isso a psicanálise torna-se, literalmente, uma Aufklärung do eu, processo de aprendizagem compensador que anula os processos de isolamento, enquanto que a linguagem da teoria freudiana é apresentada como mais pobre que a na qual foi descrita a técnica.
Enfim, como reconhece Horkheimer: “o pensamento [de Freud] é uma destas Bildungsmächte sem as quais a nossa própria filosofia não seria o que ela é” (ASSOUN, P.L. op. cit. p. 80).

Não é, pois, por acaso que a psicanálise, cultivada primeiro de qualquer modo à sombra da Segunda grande Bildungsmächt da Teoria Crítica, o marxismo, tende progressivamente a promover-se na sua importância própria. Evolução que permite avaliar melhor o escorregar decisivo que conduz a Teoria Crítica à sua verdadeira dimensão: a de uma filosofia da história reavaliando a própria subjetividade histórica. Deste modo, a psicanálise aparece como um desses preciosos e raros antídotos contra a massificação da sociedade [...] ‘Na psicanálise tudo é falso, salvo os exageros’. É com este irredutível ‘essencial’ que a psicanálise ‘dá as caras’ (ASSOUN, P.L. op. cit. p. 80).

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