domingo, 14 de junho de 2009

Santo Agostinho e a experiência maniqueísta


A experiência maniqueísta


De 371 a 374 d. C. Agostinho viveu em Cartago, supostamente com o objetivo de poder estudar. As “Confissões” não revelam nada sobre o seu desenvolvimento intelectual nos primeiros dois anos da estadia em Cartago, e o faz somente a partir de 373 d. C., quando contava Agostinho dezenove anos. Conheceu Cícero nos seus estudos de retórica e, encantado, passou a se dedicar à leitura dos clássicos disponíveis em latim. É neste momento que Agostinho envolveu-se mais com a cultura clássica, pois viu nela a possibilidade de encontrar as respostas para suas inquietações. A experiência com Cícero e seu “Hortensius”foi, entretanto, bastante curta. Agostinho tinha uma formação cristã graças a educação que Mônica, sua mãe, lhe deu. Seus questionamentos, portanto, nunca deixaram de se relacionar com a fé cristã. A admiração de Agostinho por Cristo sempre foi grande e motivadora. Cristo era um segredo a ser desvendado, e o estudo da obra ciceroniana não lhe permitia avançar em sua busca.(1) Isto não quer dizer que os clássicos foram abandonados por Agostinho. Muito diferente disto, foi o contato com as obras de retórica e filosofia que revelariam ao jovem Agostinho a possibilidade de procurar explicações para Deus e o universo fora do cristianismo e que provocaria nele o interesse pelo racionalismo pagão, que comporia juntamente com a “superstição” cristã e o misticismo maniqueísta, as três filosofias morais experimentadas por Agostinho.
O maniqueísmo surgia como uma alternativa possível ao seus problemas, pois tratava-se de um heresia cristã. Ao que parece os contatos com os maniqueus haviam se dado desde sua ida para Cartago (talvez por intermédio de seu amigo Romaniano), mas Agostinho não tinha ainda se envolvido diretamente com a cosmologia racional e o “conhecimento superior” dos discípulos de Manés. Além do interesse pelo saber da doutrina, Agostinho confessa que sentiu-se envolvido principalmente porque os maniqueus eram jovens como ele e amantes da diversão. “Suas outras qualidades sobrepujaram mais meu coração – conversas, risadas, concessões mútuas; leituras partilhadas de livros escritos de modo agradável, brincadeiras alternando com coisas sérias; argumentações calorosas (como se consigo mesmos) para condimentar nosso acordo unânime da discordância; ensinar e ser ensinado sucessivamente (...)”.(2)
O maniqueísmo era uma heresia cristã fundada no século III d. C. por Manés, que misturava as doutrinas de Zoroastro com o cristianismo. Tinha como pontos centrais em sua doutrina a crença na existência eterna de dois princípios, o bem e o mal, sendo que o bem é o próprio Deus, que domina o reino da Luz, e o mal, as próprias trevas, que é também substância. Estes dois princípios comunicam a sua substância aos seres, que são bons ou maus conforme a sua origem. Para os maniqueus, houve uma luta entre os reinos da luz e das trevas, no qual os demônios arrebataram partículas de luz. Satanás gerou Adão e comunicou-lhe estas partículas,que seriam as almas dos homens. Deus, para libertar a luz do cativeiro da matéria, criou o Sol, a Lua, os astros e a terra, sendo que esta é de matéria corrompida. O homem, para eles, é constituído de partes diferentes, cada uma com uma natureza. O corpo é matéria corrompida, oriundo do mal, e o espírito provém de Deus. O mal era, portanto, um princípio fundamental do sistema maniqueísta, e Agostinho se envolveu muito com questionamentos que diziam respeito à natureza do mal. Tempos após a sua conversão ao cristianismo, Agostinho incluiria nas suas “Confissões” o problema do mal, que, embora totalmente diferente da explicação maniqueísta, teria recursos para pensar esta categoria trazida da sua experiência juvenil.(3) Esta foi, sem dúvida, apenas uma das influências detectáveis do maniqueísmo na obra de Agostinho.
A doutrina maniqueísta é muito rica em detalhes, tendo uma natureza cosmológica e racional, e não nos cabe, neste momento, aprofundarmos nestas questões. O importante é frisar que Agostinho sentiu-se motivado pela nova experiência, pois ela tratava ao mesmo tempo de Deus e fornecia explicações de ordem racional (como desejava Agostinho). “A idéia de Agostinho do caráter intelectual do discernimento espiritual, seu desgosto pelos livros históricos do Antigo Testamento, sua necessidade urgente de respostas que o satisfizessem, tudo isto tornou-o receptivo destes ensinamentos”(4).
Por nove anos Agostinho se dedicou às discussões e à elaboração de pensamento maniqueísta. Graças ao seu interesse e à grande capacidade tornou-se um dos grandes expoentes maniqueus de sua época. Os esquemas maniqueístas pareciam combinar as vantagens da explicação cristã com as vantagens da explicação filosófica. “Os dados de seu (maniqueísta) sistema eram familiares em muitos pontos a um jovem que crescera em um lar cristão. Sustenta-se que Deus é inteira e sumamente bom, incapaz de qualquer mal; reconhece-se o homem como criatura composta, constituída de corpo e alma. A tarefa do homem é procurar o bem; ele só pode ver seu caminho por iluminação divina” (5).
Muitas das proposições de Agostinho nas “Confissões”com relação a Deus e sua natureza parecem vir da experiência maniqueísta. O Saltério Maniquel, texto que expunha as bases das crenças do maniqueísmo, permitiu, com certeza, que Agostinho pensasse filosoficamente certas categorias presentes no cristianismo apenas de maneira superficial. “O maniqueísmo forneceu a Agostinho as primeiras ferramentas experimentais para o auto-exame psicológico”(6). Após a conversão Agostinho passou a refutar sua experiência maniqueísta, como é evidente nas “Confissões”, onde ele afirma que foi enganado por falsas verdades, nas quais ele inocentemente cria.(7) Apesar disso, as noções adquiridas do contato com o maniqueísmo estão vivas, presentes em toda a sua extensa obra e seriam, por conseqüência, passadas à formulação da fé cristã medieval.
Agostinho retornou a Tagasta, sua cidade natal, em 375 d. C. e ali permaneceu por um ano. De 376 a 383 d. C. voltaria a residir em Cartago, agora como professor. Embora fosse um “dialético” maniqueísta competente e reconhecido, os argumentos do maniqueísmo já não eram suficientes para resolver suas inquietações filosóficas.As explicações através dos mitos cósmicos dos maniqueístas pareciam atrapalhar a descoberta racional de Deus. A última esperança: o grande sábio maniqueu Fausto, que Agostinho há muito desejava conhecer. O encontro entre os dois teve um tom de frustração para Agostinho, pois o “Venturoso” mostrou-se incapaz de responder às perguntas mais profundas sobre a verdade maniqueísta. “O que já me haviam dito foi-me apresentado por ele de uma maneira muito mais suave. Mas como coisas servidas em taças mais ornamentadas saciariam minha sede?” (8) O entusiasmo de Agostinho dava sinais de esgotamento. “Agostinho viu-se olhando mais fundo e mais freqüentemente em sua alma, e descobrindo sutilezas e complexidades que não eram explicadas pelas cores nítidas primárias da explicação maniquéia”.(9) Sua ida para Roma, em 383 d. C., e a permanência na Itália até 388 d. C. selaria seu afastamento do maniqueísmo.
Enxergamos Santo Agostinho como um homem inteiramente vinculado à realidade histórica do seu tempo. Seu pensamento demonstra com muita clareza que ele se encontrava num intervalo (numa transição, como prefere alguns) entre a cultura clássica e o pensamento medieval, cristão. A valorização da racionalidade, a busca do conhecimento de Deus por atividade reflexiva está muito presente em Agostinho. Legado do mundo clássico. Em contrapartida, a fé ocupa no seu pensamento uma posição central, fruto de um avanço significativo do cristianismo.
A experiência maniqueísta da juventude acompanharia Agostinho por toda a sua vida, embora ele lamentasse de tê-la tido. Mais do que influência pessoal, no seu modo de pensar e conceber o mundo, Agostinho transmitiria a toda a cristandade ocidental uma perspectiva maniqueísta da fé, em que o mal e o bem são forças contrárias presentes no homem e que rivalizam o tempo todo.
José Américo Mota Pessanha, num comentário sobre a vida e obra de Agostinho sintetiza bem o que queremos dizer: “Estava findando a Antiguidade e preparando-se a Idade Média. A nova era seria dominada pela palavra do bispo de Hipona, pois ninguém como ele tinha conseguido, na filosofia ligada ao cristianismo, atingir tal profundidade e amplitude de pensamento. Vinculou a filosofia grega, especialmente Platão, aos dogmas cristãos, mas quando isso não foi possível, não teve dúvidas em optar pela fé na palavra revelada. Combateu vigorosamente o maniqueísmo enquanto teoria metafísica, embora permanecesse visceralmente impregnado de uma concepção nitidamente dualista que contrapunha o homem a Deus, o mal ao bem, as trevas à luz.”(10)


A experiência maniqueísta (notas):
(1) Agostinho tinha formação cristã. Conhecia a base da fé, em parte graças à sua mãe, que desenvolvera nele uma necessidade espiritual vigorosa e o hábito da religião. Embora tivesse esta formação, o cristianismo ainda não tinha conseguido cativar Agostinho, pois pareceu-lhe, de início, que os cristãos não estavam aptos a responder as suas indagações. “Aos catecúmenos era comum se ocultar as coisas profundas da fé, sendo estas acessíveis apenas aos batizados. O efeito disso foi o encorajamento de Agostinho a rejeitar o cristianismo, pois achava ‘sem imponência a sua fachada’” EVANS, G.R.. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995. Pág.23 .Esta é uma das explicações possíveis à não conversão imediata de Agostinho.
(2) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág. 86 (livro III, 6)
(3) Os maniqueístas viam o mal como uma coisa concreta, que existe e que convive com o bem. Já Agostinho pensaria o mal como a ausência da Luz. Deus é o Bem supremo, é a Luz que ilumina todas as coisas. Onde brilha esta Luz não há trevas. Assim, Deus é o criador de tudo, é o “Ser”. Nada que provém da Luz pode ser mal; então tudo (já que Deus é o criador de tudo) é por natureza bom. O mal passa a se constituir no Não-Ser. O homem, quando se afasta de Deus (da Luz) por seu livre arbítrio aproxima-se, por conseqüência lógica, das trevas. “Perturbava-se a minha ignorância com estas perguntas. Assim, afastava-me da verdade com a aparência de caminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenas a privação do bem, privação cujo termo é o nada”. AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág. 88 (livro III, 6)
(4) EVANS, G.R.. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995. Pág.29
(5) EVANS, G.R.. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995. Pág.31
(6) WILLS, Garry. Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Objetiva,1999. Pág.51
(7) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág. 88 (livro III, 7)
(8) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág.128 (livro V, 5)
(9) EVANS, G.R.. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995. Pág 34
(10) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1966. Pág.23

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